Quando os fatos mudam

Hibisco roxo

Uma das minhas melhores atividades é o grupo de leitura de que tenho feito parte. A cada mês, um livro e uma reunião no mês seguinte para discutirmos. Como tem sido bom! Para a última reunião, li Hibisco roxo, da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.

Que obra! Em pouco mais de 300 páginas nos proporciona muitas reflexões. A protagonista é Kambili, uma garota rica de 15 anos, que vive isolada em um mundo criado pelo pai, um capitalista poderoso da Nigéria, à época do golpe militar. Kambili só conhecia as ordens do pai e da escola. Como era rica, o pai impunha a obrigação de que deveria ser sempre a primeira da classe. Era um pai rígido, muito severo, um verdadeiro tirano, mas o incrível é que Kambili o amava.

O livro aborda diversas questões. Uma que me chamou muito a atenção foi europeização da cultura nigeriana, com forte apelo religioso, notadamente católico. Kambili chega a fazer alguns questionamentos interessantes, como aquele Cristo de olhos azuis e a Nossa Senhora loura. Uma das cenas mais bonitas do livro é quando Kambili vê, ao amanhecer, as “orações” do avô pagão — que manteve suas crenças e não sucumbiu às imposições europeias. Nesse episódio, ela descobre que ele pede, em suas orações aos ancestrais, as mesmas coisas boas que ela pede nas orações católicas. Kambili desenvolveu amor pelo avô, com quem não tinha convivência (o pai proibia, pois era pagão) mas manteve esse amor guardado só para si. Ficamos sabendo disso na cena mais dramática do livro, que não vou contar para não dar spoiler.

Outra questão levantada fortemente foi a mudança do conhecimento sobre o mundo. Quando Kambili e o irmão passaram dez dias na casa da tia, uma professora universitária, viúva e com três filhos, conheceram como tudo pode ser diferente. Viram outras faces do amor, da compaixão, da partilha e da própria religião católica. Principalmente o irmão, Jaja, entendeu que, embora fossem ricos, tinham uma vida muito ruim, pois viviam completamente acuados pela tirania do pai, que os mantinha sob curtas e soberanas rédeas. Kambili e especialmente Jaja, passaram a ver os fatos de sua vida — a rigidez com os estudos e a religião e a obediência cega às ordens do pai — com outro olhar, com crítica: os fatos mudaram.

Kambili desenvolve uma amizade e uma cumplicidade com a prima da mesma idade. O relacionamento delas começou um pouco conturbado, mas a partir do momento que a prima compreendeu a vida horrível de Kambili, passou a amá-la e a aproximar-se dela.

Esse é um daqueles livros que, pela história de uma família, conta-se a história da humanidade, com suas tiranias, religiosidades, culturas. Nesse caso, pelo olhar de uma adolescente completamente ingênua, inocente, que não sabe nada da vida. Conseguimos ver seu despertar para a vida, para o amor.

Hibisco roxo dá apenas uns relances da ditadura nigeriana: o jornal do pai de Kambili era oposição ao regime — mas dentro de casa, ele podia estabelecer o regime que quisesse. Outro livro da autora trata desse tema com mais profundidade e já está na minha lista de leituras.

Por essas e outras, vale a pena ler:

“Com frequência fazíamos perguntas cujas respostas já sabíamos. Talvez fizéssemos isso para não precisarmos formular as outras perguntas, aquelas cujas respostas não queríamos saber”.

“Eu sempre me perguntava por que irmã Verônica precisava entender aquilo, quando era simplesmente o nosso jeito de fazer as coisas”.

“Às vezes a vida começa quando o casamento acaba”.

“Até o silêncio que caiu sobre a casa foi súbito, como se o velho silêncio houvesse se rompido e tivéssemos ficado com seus pedaços afiados nas mãos”.

“Tive medo de que a serpentina de aquecimento fizesse a água da chuva perder o cheiro de céu”.

“Existem pessoas (…) que acham que nós não conseguimos governar nosso próprio país, pois nas poucas vezes em que tentamos nós falhamos, como se todos os outros que se governam hoje em dia tivessem acertado de primeira”.

“Há certas coisas que acontecem e para as quais não podemos formular um porquê, para as quais os porquês simplesmente não existem e para as quais, talvez, eles não sejam necessários”.

4 Responses

  1. Gisele disse:

    Suas impressões sobre o livro me deram vontade de relê-lo. Um livro realmente sensível e humano!
    Passei a seguir o blog. Gostei bastante!

    • Vânia Gomes disse:

      Nossa, que legal, Gisele!!
      Realmente, é um livro incrível, que nos mostra outra cultura e nos leva a alguns questionamentos.
      Obrigada pela presença aqui no site!
      Abração da
      Vânia Gomes.

  2. Ângela disse:

    Oi Vaninha, adorei o livro Hibisco roxo, li em 3 dias. E lendo agora as suas impressões sobre ele, lembrei da história e dos momentos marcantes da leitura. Muita emoção! Adorei a leitura. Bjs.

    • Vânia Gomes disse:

      Que ótimo, Ângela!
      Às vezes, uma nova leitura nos faz perceber coisas que não tínhamos notado da primeira vez. Fico feliz que minhas impressões te despertaram esses sentimentos.
      Mil beijos.