Educação religiosa no Estado laico

 Sete é um número envolto em mistérios, e sua mística permeia várias religiões: são sete os pecados capitais; sete vacas e sete espigas apareceram no sonho do faraó desvendado por José do Egito; são sete orixás; a Menorah (candelabro judaico) tem sete braços. O sete é considerado cabalístico na… umbanda, por uma série de características dessa religião. Seria mera coincidência que o nosso douto STF tenha levado sete anos para julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439/ 2010 proposta pelo MPF, que trata do ensino religioso nas escolas públicas?  Talvez os deuses tenham conspirado a favor.

O ensino religioso em escolas é um tema que me é caro. Diversas congregações católicas são dedicadas à educação, assim como algumas comunidades evangélicas. Nada mais legítimo que se pregue sua doutrina nestas escolas. Contudo, fica difícil dizer o mesmo para escolas públicas, pertencentes ao Estado, que, segundo a Constituição, é laico.

Neste nosso Brasil tão cheio de dicotomias e paradoxos, nada é simples e objetivo. Qualquer tribunal, qualquer casa legislativa, os gabinetes dos chefes de governo etc. ostentam belos crucifixos católicos. Cadê o laicismo? Até nas cédulas de dinheiro consta um “Deus seja louvado” — só não se diz qual deus. Isto, sem falar nos feriados católicos, verdadeiro descalabro, como já comentei em uma crônica, há pouco mais de dois anos. Nada mais natural para… os católicos, claro. Contudo, em nosso país há mais de 100 religiões “cadastradas”, nem todas cristãs, nem todas “adoradoras” de crucifixos. O mercado religioso brasileiro é tão vibrante que uma estimativa de março deste ano aponta que, desde 2010, uma nova organização religiosa surge por hora no país.

Nossa Carta Magna acerta ao determinar a liberdade de religião e culto; somos uma população realmente muito diversificada. Mas o Estado é laico e, como tal, suas instituições deveriam se abster de símbolos religiosos, assim como as escolas públicas. A ADI 4.439/2010 reivindicava que o ensino religioso nas escolas públicas deveria ser não confessional, mas que as escolas deveriam oferecer uma abordagem global sobre as religiões. É um conhecimento importante, num país tão plural como o nosso. Um professor de História ou de Filosofia estaria apto a ministrar o conteúdo sob esse ponto de vista.

Ocorre que o STF não se cansa de nos surpreender: por seis votos a cinco, considerou constitucional o ensino religioso confessional nas escolas públicas, com a participação de diversos agentes das diversas religiões — praticamente uma educação religiosa. Ora, em que Brasil vivem as supremas cabeças que pensaram nisso? Com sua predominância, as religiões cristãs, com seus valores e preconceitos, e notadamente algumas seitas ditas evangélicas, pentecostais e neopentecostais, vão impor sua doutrina nas escolas. De certa forma, isso já ocorre: basta uma simples busca na internet que veremos os casos de bullying com crianças que professam religiões de origem africana, como a Umbanda e o Candomblé. O quadro global brasileiro parece ter sido ignorado.

É possível que esta decisão do STF escancare a porta do inferno. Nosso parlamento é tomado por deputados religiosos, principalmente pastores, bispos e outros detentores de títulos. Os valores de suas religiões muitas vezes se sobrepõem aos direitos dos cidadãos, como, por exemplo, na criminalização do aborto, discussão levada com muita paixão e pouca lógica, e o Queermuseu. Com a decisão desta quarta-feira, o Supremo praticamente dá um aval para que valores religiosos permeiem a ação do Estado, já começando com a educação das crianças.

A religião tem um papel fundamental na ordem social brasileira, não pode ser desprezada. Religião é importante. Entretanto, não é função do Estado — entenda-se: das escolas públicas — formar cidadãos na fé. Isso deve ser feito pelas famílias, e pelas respectivas comunidades religiosas que frequentam. As famílias podem ter acesso a canais de TV e de rádio para auxiliá-las na tarefa da educação religiosa de seus filhos.

Importante ressaltar que a legislação determina que o ensino religioso seja facultativo nas escolas públicas. Ocorre que as escolas, em geral, possuem grades fechadas das disciplinas, o que dificulta que os pais dos estudantes possam escolher a opção que melhor lhes convém. Na prática, nossas crianças estarão expostas ao proselitismo, por vezes à revelia do que os pais desejam.

As escolas públicas deveriam reunir seus esforços para aumentar a carga horária de disciplinas que interessam ao futuro do país: português, matemática e ciências. O atraso tecnológico brasileiro se deve, em parte, à defasagem do ensino nessas disciplinas — formam-se muito mais bacharéis em Direito, Administração etc., do que cientistas.

Enquanto nossas crianças se tornam analfabetas funcionais, um tempo precioso vem sendo gasto em sala de aula com matérias que não deveriam interessar ao Estado. Em poucas gerações, muito provavelmente, o Brasil terá uma sociedade obscurantista e intolerante, e veremos “Deus” acima do Estado.

Bom fim de semana procês!

Imagem: Geledés.