É proibido nascer

 

Após curtas férias no paraíso brasileiro de Fernando de Noronha, retorno às crônicas de sexta justamente para falar de lá. Mas não será um diário de bordo — este disponibilizarei aqui em meu site em breve, com algumas dicas. O que quero dizer e enfatizar sobre Noronha é que, a despeito do Parque Nacional Marinho, a maior riqueza que senti e vivi na ilha foi conviver com a gente local.

Os ilhéus são pessoas incríveis! O tipo de gente que não vemos mais em lugar nenhum: olhar doce, voz adocicada, jeito cheio de doçura, acolhedor. Não percebemos maldade — todos querem ajudar, e verdadeiramente ajudam. Sentem com você como é gratificante estar lá, no lar deles; o sorriso franco e aberto é a marca dessa gente linda. O paraíso natural é maravilhoso, mas isso não é surpresa — o comportamento das pessoas é mais surpreendente, principalmente para quem está acostumado a ver tantos interesses por trás das “boas” intenções.

Na ilha, não vemos moradores de rua, não se ouve falar em assalto, roubo, nada disso. Não existe violência, parece que todo mundo é feliz. Parece.

Pois urge denunciar — e não sou a primeira a fazê-lo — a violência a que os ilhéus, noronhenses e moradores da única ilha oceânica brasileira habitada, são submetidos há mais de uma década. Tacitamente, é proibido nascer em Fernando de Noronha.

A desculpa, esfarrapadíssima, é que o hospital local não tem infraestrutura de alta complexidade. Ora, ora, quantos locais nesse nosso Brasil não atendem a uma norma do Ministério da Saúde de que é preciso um hospital de alta complexidade num raio de 500 metros de uma casa de parto? Quantas mulheres ainda dão à luz com parteira, ou mesmo sozinhas, no meio do nada, na roça, sem nenhum apoio profissional? Aliás, foi assim que a humanidade cresceu e se multiplicou — minha avó deu à luz 10 bebês num rincão das gerais, com o auxílio de uma parteira, e um tio apressadinho nasceu sem parteira mesmo e está vivíssimo da silva, beirando os 70 anos de idade, com saúde pra dar e vender.

Uma mulher nascida e criada em Noronha não pode parir seus filhos no local desde 2004, quando a maternidade do hospital foi desativada, com a justificativa de que a manutenção da infraestrutura era cara para apenas uns 40 partos por ano. Desde então, aos sete meses de gravidez, as gestantes vão para Recife para terem seus filhos, com as despesas de hotel e passagens pagas pelo governo pernambucano. A maioria das mulheres vai sozinha, e enfrenta esse momento delicado e cheio de inseguranças sem a família, sem o pai do bebê, longe daqueles a quem ama. Casamentos ficam abalados, chega-se a ter famílias desfeitas. Numa época em que se enche a boca para falar da “humanização de partos”, em Fernando de Noronha observamos uma desumanidade com as famílias, especialmente com as futuras mamães.

O cineasta Alan Schvarsberg, em seu documentário “Ninguém nasce no paraíso”, aborda essa situação gravíssima. Denuncia que há um projeto político de esterilização na ilha, pois muitas mulheres estão deixando de ter filhos, dados os traumas e histórias infelizes. Segundo o artista, o interesse do governo é que Noronha seja apenas um destino, um banco que não dê despesas caras, como escola, saúde e outros serviços necessários a uma população estabelecida.

Aliás, pudemos perceber que a população noronhense está abandonada. A ilha, um distrito estadual, é dirigida por um administrador nomeado pelo governador de Pernambuco. Os moradores de Noronha votam apenas de quatro em quatro anos; não há prefeito, nem Câmara de Vereadores. Segundo o relato que ouvi de um ilhéu, o tal administrador aparece para despachar uma semana por mês. Depois, vai embora; não vivencia os problemas de quem vive, mora e trabalha lá. Enfim, passa umas férias de cinco dias no paraíso, todos os meses. Nada mal, não?

Enquanto isso, as ruas da cidade, afora as principais nas vilas, estão erodidas, uma buraqueira só. Não têm calçamento algum: apenas terra e pedras que, parece, os próprios moradores colocam para melhorar um pouco o trânsito de carros e de pedestres. Tudo muito precário. De acordo com o que me disseram, de todos os recursos arrecadados na ilha, apenas 5% devem voltar na forma de benfeitorias, melhorias reais para os moradores.

Em Fernando de Noronha, ninguém é proprietário de terreno nenhum; os terrenos e, consequentemente, as casas onde as pessoas moram, são concessões do governo. Talvez isso explique essa coisa de, no futuro, não haver noronhenses, o que reforça a violência a que as famílias que lá vivem estão submetidas.

Enfim, todo paraíso só é paraíso mesmo para quem está de passagem. Quem vive em Noronha, ainda que ame o arquipélago, encara questões de ordem prática bem mais complexas do que qualquer outro brasileiro.

Bom fim de semana procês!

Foto da autora.

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1 Response

  1. 08/21/2017

    […] Atualmente, Fernando de Noronha é um distrito estadual de Pernambuco, gerida por um administrador nomeado pelo governador do Estado. Mais informações estão na crônica “É proibido nascer”. […]