Que seja justa toda forma de amor

boticaSucesso total a campanha publicitária de uma empresa de cosméticos brasileira, afinal todo mundo está comentando a respeito. Está na internet, em todos os sites, está nos telejornais, enfim, o nome da marca está na boca do povo. Até eu, que praticamente não vejo televisão, ante a polêmica resolvi ver a tal propaganda no YouTube. É bonita, delicada, sutil e, sobretudo, mostra o verdadeiro sentido da comemoração do Dia dos Namorados: o amor.

A polêmica foi tanta que gerou disputa entre likes e dislikes no YouTube. Os likes estão ganhando, ufa, eu também dei o meu. O que está difícil de compreender é o motivo das reações homofóbicas, uma vez que esta não é a primeira campanha publicitária de empresa brasileira veiculada no país que aborda o tema “qualquer maneira de amor vale a pena”. No Dia das Mães deste ano, por exemplo, uma empresa aérea nacional fez uma campanha linda, com vários tipos de mães, incluindo aí uma família formada por dois pais e um menino adotado. Confesso, me emocionei com o vídeo, me arrancou lágrimas. Mostra a história da decisão de um casal homossexual adotar uma criança, flashes de uma vida de criança saudável, amada e feliz, que reconhece na sua família, com seus dois pais, um porto seguro. Também não vi essa propaganda na TV, a vi na internet, e estou espantadíssima porque a diferença de veiculação entre as duas foi de apenas 20 dias! Uma gerou reações e a outra passou despercebida. Por quê? Na minha modesta opinião, ambas falam belamente da mesma coisa: amor.

De qualquer forma, o fato que se apresenta é que vivemos num país muito atrasado e com uma cultura ultraconservadora, agravada por uma forte influência religiosa.

Na Grécia antiga, como é de conhecimento geral, relações homoafetivas eram muito comuns. Em Atenas, tais relações eram como se fossem um rito de passagem, e havia uma espécie de código social que as regia. No poderoso e reconhecido exército espartano, as relações homoafetivas eram até incentivadas, com o objetivo de torná-lo mais forte. Em ambos os casos, a homossexualidade ia além da simples busca do prazer sexual.

Com o advento do cristianismo, relações assim passaram a ser vistas como pecaminosas. Em muitas sociedades, ser homossexual era crime e o atual maior símbolo disso é o genial Alan Turing, que tem parte de sua biografia contada no filme “O jogo da imitação”. Alan Turing foi julgado e condenado por ser homossexual, à época, crime no Reino Unido. Alan foi humilhado em público, impedido de acompanhar estudos sobre computadores (ele é considerado o pai da ciência da computação) e condenado a tomar estrogênio (hormônio feminino); tudo isso o debilitou psicologicamente, levando-o ao suicídio em 1954. Em 1967, o homossexualismo deixou de ser crime na Inglaterra e na Irlanda. Em 2009, 55 anos após sua morte, o primeiro-ministro britânico pediu desculpas formalmente, em nome do governo, pelo tratamento desumano dirigido a Alan Turing. E, finalmente, em 2013, a Rainha Elizabeth II concedeu a Real Prerrogativa do Perdão a Turing, após uma petição popular. Desculpem-me, não entendo nada de monarquia, mas achei isso tão arrogante!

Em meio ao fato da Grã-Bretanha tentar “corrigir” ou reconhecer o mal feito a Turing (isso não apaga seu suicídio e muito menos a vida atormentada que ele teve, coitado), em pleno século XXI ainda há países no mundo que criminalizam o homossexualismo, inclusive com pena de morte.

O Brasil esteve na vanguarda: homossexualidade aqui não é considerada crime desde 1830, ou seja, desde os tempos da família imperial catoliquíssima — realmente, um avanço! Mais recentemente, em 1995, a Senadora Marta Suplicy propôs um projeto de lei que institui a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Até hoje, o PL não foi apreciado em plenário. Apesar disso, a união homossexual no Brasil é permitida. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, unanimemente, que há uma unidade familiar em uma união homoafetiva, e, portanto, os direitos de casais homossexuais assemelham-se aos direitos de união estável de um casal hétero, incluindo pensão e inclusão em planos de saúde. E, finalmente, em 2013, o STF determinou que os cartórios de todo o país devem reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo tal qual como entre pessoas de sexos diferentes.

Pelo que pude perceber das propagandas, tanto da empresa de cosméticos quanto da companhia aérea, a abordagem feita nada tem a ver com simples prazer sexual. Ao contrário, em ambas pode-se constatar que a ênfase é dada na relação em si, no amor entre as pessoas, na vontade de constituir uma família, ou seja, nos melhores preceitos de uma sociedade. A Ministra Ellen Gracie, do STF, foi muito feliz ao dizer que “uma sociedade decente é uma sociedade que não humilha seus integrantes”. A reação de um “pastor” à propaganda recentemente veiculada foi no sentido de humilhar. Dirigiu-se à empresa com um sonoro “vá vender perfume pra gay”, e convocou as “pessoas de bem” a boicotarem a tal empresa. Engraçado que no vídeo que fez questão de compartilhar (e que também está ocupando espaço na internet), o tal “pastor” defende o direito de a pessoa ser gay, ao tempo em que critica o que ele chama de comportamento gay. Parece uma incoerência grande defender e, ao mesmo tempo, criticar. Se é um direito dos cidadãos, por que fazer campanhas negativas contra quem vive esse direito? Trata-se de uma manifestação fortemente preconceituosa.

A conclusão óbvia é que no alto nível da esfera decisória brasileira estamos muito bem, na vanguarda da defesa de direitos civis, como tem demonstrado o nosso STF. Mas, infelizmente, a realidade nua, crua e duríssima é a que prevalece, a que o tal “pastor” vive propagando. Nossa sociedade ainda deve caminhar muito para ser minimamente decente e considerar justa toda forma de amor.

E um bom fim de semana procês!

1 Response

  1. Miguel Jacó disse:

    Boa noite Vânia, você disseca este assunto com muita propriedade, no tocante ao comercial da Boticário, eu fico com uma inveja sadia daquele menina linda que conquistou os afetos de outra não menos linda, do casal de homens nem uma inveja, e menos ainda repúdio, tecnicamente o casal masculino tem mias o que explorar, pois ambos podem fazer penetrações condição esta vetada ao casal feminino, de modos que o que as pessoas querem não é permissão para se darem ao mesmo sexo, querem e com rasão as garantias dos direitos civis, o mais é balela, parabéns pelo exímia crônica, um abraço, MJ.