Acerto de contas

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“Na verdade, eu estava decepcionado com minha condição”, disse àquele homem, como que tentando justificar o meu ato quase insano, mas muito consciente. Não vi nenhum sorriso, nenhuma expressão, o olhar era firme e não me dizia nada. Mesmo sem um divã, decidi contar-lhe a minha história.

— Veja bem – comecei – coloque-se no meu lugar – disse isso, mesmo sabendo que seria impossível que ele o fizesse. Continuei:

— Imagine que você viveu sua vida toda numa roda viva. Um trabalho que te fazia feliz, muito dinâmico, cheio de viagens e você ainda ganhava bem. A dedicação era total, assim como a felicidade de realizar todos os seus desejos: ser um executivo bem sucedido, casado com uma boa mulher que cuida de seus filhos e você só tem que por comida e alguns mimos em casa.

— Até aí somos parecidos – disse, mas sem me dar esperanças de que poderia convencê-lo.

— Pois bem, ela gastava o que eu dava de dinheiro, diria que era uma mulher low maintenance. Eu dava pouco mesmo. O meu dinheiro era para os meus gastos fora, sabe como é. E também consegui juntar um patrimônio até razoável. Mas aí você passa a sua vida desse jeito. Sua casa é perfeita e, sendo alguém bem sucedido, começam a aparecer mulheres por todas as partes. Ora, não sou de ferro! Tinha dinheiro para bancar tudo e banquei mesmo.

— Posso fazer uma pergunta?

— Claro!

— E seus filhos?

— São ótimos, têm suas famílias. Mas não os vejo há muito tempo. Faz quase um ano, foi no último dia dos pais.

— Ahan. Continue.

— Como eu dizia, não sou de ferro. Tive muitas mulheres.

— E onde elas estão agora?

— Não sei.

— Ahan. Continue.

— Mas também nem quero saber. A mãe dos meus filhos, apesar de ter se separado de mim e se casado de novo, sei que está bem. Com ela, eu me importo. Não fui o melhor marido do mundo, mas dei muita coisa a ela. Inclusive a casa onde ela mora com o cara dela agora.

O homem me encarou, esperando que eu dissesse mais alguma coisa.

— Então, como eu disse, ela não aguentou meu sucesso e quis se separar de mim. Fez muitas exigências, foi uma briga e tanto, e tive que dar muitas coisas para minha ex-mulher. Ela era uma pessoa simples, sabe, precisava ver. Mas aí arranjou um advogado feladaputa que quase me arrancou as cuecas! Depois de um tempo, percebi que fiz merda, mas já estava feita e não dava mais pra limpar. Dos males o menor, afinal meu trabalho me preenchia. Eu não precisava de muita coisa.

Fiz uma pausa e encarei aquele homem. Quando só ouvia falar dele, pensava que seria um velho. Mas não, era bem mais jovem do que eu. Por que nos passam imagens tão erradas de pessoas assim?

— E você precisava de quê, então?

Meus pensamentos foram interrompidos pela pergunta inesperada.

— Eu precisava do agito do trabalho, aeroporto, reuniões tensas, vários e-mails para responder por dia, jantares regados aos melhores uísques. Eu precisava fazer fumaça com charuto cubano e ter mulheres gostosas. E, claro, precisava daquele salário ótimo que me pagavam, mesmo porque boa parte dele era comido pela pensão da ex. Minha vida não era ruim, não.

— Dizem que tudo o que é bom, dura pouco…

— Durou o que tinha que durar. Uma pena que não foi minha vida inteira… – tomei fôlego e prossegui:

— Quando completei 65 anos, contrataram um novo executivo para me acompanhar. O cara era um caretão! E viado, não gostava de mulher. Mas admito que era inteligente e eficiente. Foi tomando o meu lugar devagarzinho, o danado. Pouco antes de eu completar 70 anos, me chamaram no RH com aquela conversa que eu ia fazer 70 anos e já era hora de me aposentar e não sei mais o quê. Mandei a moça à merda, não quis nem saber. Achava o quê, que eu não prestava mais para a empresa? Só porque tinham aquele viadinho de merda praticamente recém-chegado? E ela, do alto dos seus trinta e poucos anos, achava que falava com quem? Aquela empresa, que lhe pagava muito bem por sinal, não seria o que era sem mim e sem o excelente trabalho que executei por mais de 30 anos!

— E ganhou o quê ofendendo as pessoas desse jeito?

— Uma advertência da nova diretoria e minha aposentadoria, que era o que fariam de um jeito ou de outro. Uns merdas! Saí de lá fulo da vida. Parei num café já perto de casa. O mesmo café onde eu passo a maior parte do dia desde então. As moças de lá são bacanas. Até já levei algumas pra minha cama. Hehehehe Precisavam de grana, sabe como é… Todos os dias eu tomava um macchiato com bombons de marzipã no fim de tarde. Quando o café fechava, eu ia pro piano bar da rua de cima tomar uísques. A merda é que o dinheiro da aposentadoria é uma mixaria e foi só eu parar de trabalhar pra começar a aparecer um monte de doença. Aí, quando falhei na cama com uma gostosa que peguei no bar, desisti.

— E só por isso você deu um tiro na boca?

— Acha pouco, pô?

— Era sua chance de pagar tudo. Seus filhos cuidariam de você, ainda que por obrigação, mas não o abandonariam. Pelo plano inicial, você viveria mais uns cinco anos impotente, quando então teria um infarto, o que geraria uma mudança no seu comportamento geral e o faria arrepender-se de todos os seus pecados. Mais cinco anos para espiar e teria uma boa morte, com passaporte de entrada carimbado, nem precisaria me dizer nada aqui. Olha, sua situação não é boa, não. Como porteiro, não posso deixar entrar gente com o seu perfil.

— Pecados? Como assim?

— Dos sete pecados capitais, seu currículo tem cinco: luxúria, avareza, ira, inveja e vaidade. E pior que todos eles juntos é o suicídio, além da homofobia, ainda que disfarçada. No céu tá bem difícil de você entrar, meu chapa!

— Então eu vou pro inferno?

— Infelizmente, você mesmo pavimentou seu próprio caminho e se arrependeu só de uma coisa errada.

— E quem você pensa que é? Quem é você pra me julgar, Seu Pedro? O juízo final não é de reponsabilidade do próprio dono dessa bodega de merda?

— Sim, claro. A sentença foi dada pelo Próprio, que em toda a sua onipotência e onipresença, acompanhou toda a sua vida. Se você se arrependesse de alguma coisa enquanto me contava tudo isso, eu até te deixava entrar, mas como não se arrepende de quase nada…

Dei um murro naquele balcãozinho ridículo que colocaram pro Pedro e saí puto daquela merda de portão. Como que um cara tão novo me julga assim? Só porque é santo? Parecia mais o viadinho que ficou com meu lugar na firma. Tá tudo errado mesmo. Tô aqui agora sem nem saber pra que lado fica o tal do inferno.

Pensando melhor, pode ser que lá seja bom. Sempre gostei de inferninhos…

2 Responses

  1. Maria Mar disse:

    Muito bomVania! Parabéns,querida!