Santas ou putas: quem nos julga?

seccoEsta semana a atriz Deborah Secco fez aniversário: trinta e cinco anos, linda, corpão e talentosa na profissão que escolheu. Mas o que me chamou a atenção para uma matéria na internet sobre a atriz foi um porém no título: “35 anos (…) sem um amor”.

Resolvi ler a matéria só por isso. Achei um absurdo a cobrança, velada, de que a moça tivesse que estar casada, com filhos, cachorro e papagaio. Senti compaixão por ela. Nem sei se esse é o objetivo de vida dela, e me arrisco a dizer que não, exatamente por seu sucesso e dedicação profissional. Mas se ela é cobrada por isso na internet, imagine à boca pequena, nos círculos que frequenta, coitada!

E esse episódio traz à tona um dos temas recorrentes de meus bate-papos conjugais: o quanto é difícil ser mulher. Eu mesma fui muito cobrada (muito mais por amigos do que por familiares) pelo fato de não ter ninguém durante muito tempo; me casei “velha”, com 32 anos. E ainda ouço cobranças para engravidar, com aquela conversa de que “uma mulher não é completa se não tem filhos”. Cá pra nós, existe frase mais machista?

Tive meu primeiro namorado aos 16 anos, e não fosse meu sonho de independência emocional e financeira, teria me casado logo que terminasse a faculdade. Hoje, talvez eu tivesse uma família de comercial de margarina, mas preferi jogar para o alto essa perspectiva. Antes de me comprometer, resolvi estudar mais e ir atrás de meus sonhos. Só meus.

Aos 30, já havia conquistado meus principais objetivos e estava estabelecida na vida: morava e me sustentava sozinha há anos, era a dona do meu narizinho e tinha o respeito de meus pais que, aliás, nunca me cobraram ter ou não alguém. A essa altura, eu estava muito satisfeita e certa de que viveria sozinha, afinal não precisava de ninguém para atrapalhar meu sossego e minha liberdade. Já tinha vivido algumas aventuras amorosas, experiências até incomuns para a maioria das mulheres. Estava definitivamente bem resolvida e não estava à caça. Mas como minha vida é envolta em paradoxos, só para colocar mais um o destino jogou no meu colo um homem maravilhoso e me convenceu a mudar de ideia.

Depois de casada, aturo as cobranças de gravidez e filhos que, em 99,99% dos casos, vêm de mulheres. A matéria que li sobre a Deborah Secco não traz o nome do autor, mas posso apostar que foi uma mulher quem escreveu. Um homem jamais prestaria atenção ao detalhe de que a atriz está só, já que ela  conta com tantos atributos e aspectos interessantes em seu fenótipo e em sua biografia.

Além dessas cobranças todas, há outras situações que dificultam nossa vida de mulher no Brasil: temos que ser “santas”. Um comportamento incomum ou algo que seja considerado um pequeno deslize é suficiente para que sejamos rotuladas de “piranha” e “vagabunda”. Temos que estar sempre atentas às roupas que usamos, para não passar uma mensagem equivocada sobre nossa personalidade, nossos interesses ou intenções. Precisamos estar sempre magras, cheirosas, bem dispostas e bem-humoradas, para não sermos chamadas de “mal-amadas” ou, pior, “mal comidas” — com o perdão do péssimo termo, mas é exatamente assim que acontece —, independente de como está nosso dia ou nossas economias ou nossa vida particular ou a saúde de nossos pais. Se nossa casa não está um brinco, somos porcas e desorganizadas, ainda que vivamos com um marido e filhos adolescentes que poderiam ajudar a pôr ordem na bagunça, do mesmo jeito que ajudam a bagunçar. E a cereja do bolo: um cargo de chefia ou sucesso profissional só pode ter sido obtido porque a moça tem um caso amoroso com algum bambambã que a premiou, nunca por méritos próprios e à custa de muito trabalho.

O pior é constatar que há, com uma frequência significativa, chefes que assediam funcionárias bonitas, com a promessa de êxito profissional. Negada a “oferta”, começa a perseguição. Testemunhei uma situação dessas em meu ambiente de trabalho. A moça que sofreu o assédio é um exemplo para todas nós: não se deixou abater, foi às instâncias superiores e conseguiu que o homem imoral fosse impedido de assumir cargos de chefia por um bom tempo. Não foi fácil vencer essa parada, porque além da pressão no ambiente de trabalho, ela foi vítima de uma vil difamação. Mas, tacitamente, o tal homem tornou-se persona non grata por aquelas bandas.

Infelizmente, no entanto, esses exemplos ainda significam pouco perto do que grande parte das mulheres sofre, como violência física e psicológica. Algumas são as responsáveis pelo sustento de seus maridos ou filhos adultos que não trabalham, e ai delas se a comida não estiver pronta na hora certa. E não podemos nos esquecer das mães e mulheres de presos, que passam pelas mais diversas humilhações e agressões, vindas de todos os lados da sociedade, da comunidade e até de suas próprias famílias.

Ser mulher, como podem ver, não é tarefa das mais fáceis e, dependendo do contexto social e familiar em que estejam inseridas, os sofrimentos e as perseguições fazem de muitas delas verdadeiras mártires sociais, ante a certeza da impunidade de seus agressores.

Apesar de estarmos cronologicamente no século XXI, em muitos aspectos de nossos costumes ainda estamos apegados aos séculos XIX e XX. E não acredito que isso ocorra por acaso; me parece ser fruto da contínua e incentivada pobreza que caracteriza nosso país, não tanto a material, mas principalmente a intelectual.

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3 Responses

  1. Maria Augusta Rolim disse:

    Meu orgulho, essa foi minha aluna!

    • Vania Gomes disse:

      Deixou-me sem palavras, querida Profa. Maria Augusta! É uma alegria imensa saber que sou motivo de orgulho para uma mestra, que tanto admiro!
      Obrigada pela presença sempre carinhosa.
      Mil beijos.

  1. 11/03/2015

    […] crônica “Santas ou putas: quem nos julga?” faço um relato do quão difícil é ser mulher. E mais difícil ainda é fazer com que os homens […]