Cartas de Helena

 De briefschrijfsterI                      

 

    Arraial do Tijuco, 28 de novembro de 1755.
Querida madrinha Francisca, a sua bênção!
Espero que esteja melhor da enfermidade que a impediu de me visitar no dia de meu aniversário de 15 anos. Quero muito lhe agradecer pelo lindo presente que me enviou. Será muito útil em meu enxoval. Papai deu-me de presente uma escrava de 12 anos, de bons dentes e bem esperta. Mamãe diz que ela é preguiçosa, mas como eu ainda não me casei, ela não tem muitas coisas para fazer…
Tive uma surpresa no meu aniversário. A Dona Chica da Silva veio me visitar e me deu diamantes de presente! Mamãe não gostou, mas tratou bem a mulher do contratador que, inclusive, é muito gentil.  Afora o fato de ela ser negra e ter sido escrava até o ano passado, ela é uma dama normal. Tomou chá conosco e perguntou se eu já tinha noivo, se já pensava em me casar. Mamãe apressou-se em dizer que sim, com moço de boa família. Mas Dona Chica disse que queria saber de mim, o que eu achava de me casar. Fiquei nervosa, porque ninguém nunca me pergunta nada e é sempre mamãe quem responde. Eu disse então que achava bom, porque uma moça como eu deve se casar e ter muitos filhos. E eu quero ter mesmo muitos filhos, uma família bem grande, uns doze filhos acho que é o ideal. Mamãe gostou de minha resposta. Dona Chica disse que nós, mulheres, temos que ser valentes. Ela, por exemplo, segredou-nos que estava desconfiada que esperava outro filho do contratador, mas não tinha muita certeza ainda. Mamãe não ficou nada à vontade com a revelação. Quando ela foi embora, mamãe ensinou-me que não devemos revelar essas coisas a pessoas que não sejam íntimas, como Dona Chica fizera. Ela, até bem pouco tempo, era uma escrava, não teve a educação refinada que eu tive e por isso não sabe se portar tão bem.
Meu noivo veio me visitar pela primeira vez um dia depois de meu aniversário. Ele se chama José de Arimateia Soares e é um rapaz sério, educado, fino e distinto. O pai dele veio ajudar o Contratador João Fernandes e papai, já procurando um noivo para mim, combinou com o pai dele. José acabou de chegar de Lisboa, onde estudou. É doutor e também vai ajudar no controle do garimpo.  Gostei do jeito dele e acho que ele gostou de mim também, porque quando foi embora sorriu para mim depois de beijar minha mão. No próximo domingo depois da missa, ele e a família vêm almoçar aqui em casa e vamos marcar a data do casamento. Estou tão ansiosa! Meu vestido de noiva ainda está inacabado. Falta bordar uma parte grande da saia e eu e minha mana Bastiana passamos dias inteiros bordando meu vestido. Às vezes, quando minha irmãzinha Carolina vai dormir depois do almoço, mamãe ajuda no bordado. Bem que Carolina podia ter nascido no lugar do Agostinho, que aí ela teria 12 anos e poderia ajudar no bordado também. Usarei a mesma mantilha com que mamãe se casou. Meu enxoval já está praticamente pronto. Falta ainda bordar a letra “J” junto ao “H” de meu nome em algumas peças.
Papai disse que na fazenda tem dois capados quase no ponto para a festa e já escolheu o boi que vai matar. Quando marcarmos a data avisarei, e eu espero a senhora e o padrinho para a cerimônia e a festa. Lembre-se que serão meus padrinhos!
Agora preciso voltar ao bordado de meu vestido. Estou mais preocupada com isso, porque as peças de meu enxoval que ainda não estão prontas posso bordar depois do casamento.
Minhas lembranças para as primas. Por favor, deixe a Quitéria visitar-me um dia. Se ela vier, poderá ajudar no bordado do meu vestido de noiva. Mamãe e Bastiana mandam lembranças para a senhora.
Dê-nos notícias. E abençoe-me, madrinha.
Com afeto, da afilhada que muito lhe estima,
Helena.
P.S.: Madrinha, mando para a senhora uma das pedrinhas de diamante que a Dona Chica me deu. É um presente.
 

II

 Arraial do Tijuco, 12 de dezembro de 1755.
Querida prima Quitéria,
Como tem passado os dias? Com a graça de Deus, aqui em casa estamos todos bem. Soube que madrinha Francisca não tem estado muito bem de saúde e por isso vosmecê não tem podido nos visitar. Há dias queremos ir até aí fazer uma visita, principalmente para a madrinha, mas todos os preparativos de meu casamento e ainda o fato de papai ter ido até Vila Rica com o contratador João Fernandes, nos tem impedido de sair de casa.
Ficamos muito felizes em saber de seu noivado com o Antônio Torres de Sá Filho. De fato, esta é uma excelente família, de boas posses, e Antônio Filho é muito bom moço. Papai comentou antes de viajar que gostaria que Antônio Filho se casasse com Bastiana, mas pensa que é melhor arrumar casamento para vosmecê primeiro e que o padrinho fez muito boa escolha. Prima, vosmecê é uma moça de muita sorte, principalmente porque ainda conseguiu um bom noivo com a idade que já está. Eu estava muito preocupada com isso, pois papai queria que eu completasse 15 anos antes de me casar, mas o padrinho esperou muito, até os 17 anos para arrumar noivo para vosmecê!  Papai disse que, por vosmecê ser a única filha mulher seu pai sente ciúmes. Achei engraçado isso, mas a verdade é que aqui em casa somos quatro filhas mulheres. Sem falar nos homens, que são seis! Bom, o que importa é o futuro e o nosso será muito feliz com nossos maridos e nossos filhos, com graça do bom Deus.
Meu noivo, como já deve saber, é o José de Arimatéia Soares, filho do Capitão João Batista Soares, que veio para a ajudar o Contratador João Fernandes no garimpo. Já marcamos a data do casamento: será dia 5 fevereiro do ano que vem. Papai fez questão de dar um tempo maior, porque quer que José venha todos os dias aqui em casa para que eu o conheça e me afeiçoe a ele. Mamãe não gostou muito, ela disse que viu papai pela primeira vez no altar e isso não a impediu de ser uma excelente esposa. Papai não fala sobre esse assunto, mas penso que ele preferia ter convivido um pouco com mamãe antes de se casarem. Mas o que importa, minha boa prima, é que José é muito bom moço, gentil e me trata com muito respeito. Sinto que terei uma vida feliz a seu lado, teremos muitos filhos e netos e vamos morrer velhinhos, juntinhos.  José contou-nos que já comprou as terras vizinhas às do contratador João Fernandes. Disse que lá tem uma boa casa e já a comprou com alguns escravos e umas vacas leiteiras. Vi que papai ficou muito satisfeito. José disse também que mandou trazer móveis novos de Vila Rica e mandou limpar tudo, principalmente a senzala. Achei estranho esse cuidado, mas penso que ele é um rapaz bem limpo. Ontem, enquanto mamãe foi acudir a escrava que deixou o café cair a caminho da sala de visitas, José pegou minha mão, beijou-a e disse que minhas mãos são muito bonitas. Eu fiquei sem jeito, mas disse a ele que sabia bordar e costurar bem. Quando mamãe voltou, não gostou de ver José tão próximo a mim. Ele pediu desculpas e disse a mamãe o quanto admirava minhas mãos e que era um feliz noivo em saber que sua futura senhora é muito prendada. Mamãe ficou com a cara fechada até o fim da visita e quando José foi embora, ela disse que era por essa razão que pensava que eu devia ver José somente na Igreja. Um descuido e poderei ser desvirtuada. Eu disse a ela, com todo o respeito que tenho por mamãe, que José é moço respeitador e que jamais me desvirtuará. Mamãe decidiu que a partir de amanhã eu me sentarei na cadeira de papai, sem o menor contato com José e que estou proibida de sorrir para ele, pois ele hoje se atreveu a aproximar-se de mim porque julgou-me pouco séria. Chorei a noite toda. Mamãe foi injusta comigo em sua fala, sou moça séria e, afinal, José será meu esposo. Prima Quitéria, diga-me: vosmecê pensa que agi mal com José ou mamãe exagera em seus julgamentos?
Minha boa prima, mamãe e eu já decidimos fazer-lhes uma visita assim que papai retornar de Vila Rica. Queremos muito ver a madrinha Francisca. Ela precisa ficar boa logo, porque quero que seja minha madrinha de casamento também! Quero muito que vosmecê apareça aqui em casa para ver meu vestido de noiva. Já está quase pronto! Bastiana já começou a bordar seu vestido, pois papai já anunciou que assim que eu me casar vai procurar um noivo para ela. Ano que vem ela completará 15 anos e, para papai, é a idade ideal para uma moça se casar. Mamãe quer que todas nós usemos a mesma mantilha que ela usou quando se casou. Isso significa que terei que devolver a mantilha que usarei depois de meu casamento, já que sou a filha mais velha. Depois de mim, minhas três irmãs ainda usarão a mantilha. Eu preferia mesmo que papai trouxesse uma mantilha bem bonita de Vila Rica para meu casamento, mas essas tradições de mamãe sempre atrapalham nossos planos.
Bem, prima, penso que vosmecê também deve estar bastante ocupada com seu vestido de noiva. Mostre-me quando formos visitá-las. Por ora, não vou incomodá-la mais com meus lamentos sobre mamãe.
Com afeto, da prima que muito lhe considera,
Helena.
P.S.: Por favor, diga a madrinha Francisca que estimo melhoras e que assim que papai voltar de Vila Rica vamos visitá-la.
 

III

                         

 Arraial do Tijuco, 2 de janeiro de 1.756
 
                Querida Prima Quitéria,

         Cartas de Helena 3 Como tem passado? Desejo que o ano de 1.756 da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo seja próspero e que vosmecê goze de muita saúde e felicidade! 

          Gostaria de contar-lhe que mamãe e eu passamos horas muito agradáveis ao lado da madrinha e de vosmecê quando as visitamos. Folgamos em saber que o mal-estar da madrinha Francisca foi devido aos incômodos decorrentes de mais uma gravidez. Tomara que venha uma menina para fazer companhia à madrinha depois que vosmecê se casar, prima Quitéria! Penso que ela sentirá muito a falta de vosmecê… 

          Espero que seu Natal tenha sido feliz! Aqui o Natal foi bem diferente dos anos anteriores. Padre Eurico celebrou a Missa do Galo e fez um sermão comprido, mas muito piedoso. Depois da Missa, Dona Chica da Silva ofereceu uma Ceia de Natal e como papai trabalha com o Contratador João Fernandes, fomos todos convidados, inclusive o Capitão João Batista Soares e a família. Dona Chica esmerou-se: mandou trazer um lindo presépio de Portugal, muito rico de tecidos, ouro e diamantes! Nunca em minha vida tinha visto um tão bonito! Havia muita fartura de comida e bebida e muitos escravos bem vestidos servindo deliciosas iguarias! Parece que Dona Chica tem especial apreço por mim, porque quis mostrar-me sua casa (foi a primeira vez que estive lá) e confirmou que está à espera de mais um filho do Contratador. Depois, assuntou comigo se mamãe e papai aceitariam ser padrinhos de seu filho. Fiquei nervosa, não sabia o que responder, afinal mamãe não aprecia Dona Chica, mas como trata-se do filho do Contratador, achei por bem dizer-lhe que meus pais sentir-se-ão honrados com tamanha distinção. 

          Eu conheci minha sogra na ceia de Natal, pois Dona Pilar de Mello Marques Soares chegou de Lisboa alguns dias antes. José se parece bastante com sua mãe, que é uma senhora airosa e muito discreta, de rosto fino e tez aveludada. Fiquei surpresa em saber que ela viveu uma parte de sua vida aqui no Tijuco e que foi embora para Portugal com a família para casar-se com o Capitão. Mamãe e papai a conheciam e, pelo que pude perceber, mamãe se surpreendeu ao saber que Dona Pilar era a mãe de José. E mais, tenho a impressão que mamãe não gostou nada disso. Sem querer, ouvi-a cochichar com papai que não admitiria tamanha afronta se eu, Helena (ela disse meu nome com ênfase), me casasse com o filho daquela mulher. Nessa hora papai me viu e mudou de assunto. Estou até hoje com medo de cancelarem meu casamento porque mamãe não gosta de Dona Pilar. Estou muito afeiçoada a José e creio que ele também se afeiçoou a mim. E o pior, se meus pais cancelarem meu casamento, quem será ousado o bastante para ser meu noivo depois disso? Correrei o risco de ficar solteira para o resto da vida e nada poderá ser pior. Penso em falar com papai sobre isso, mas tenho medo. Conversar com mamãe está fora de questão – se eu lhe disser uma palavra, é capaz de ela cancelar meu casamento sem falar com papai! Para piorar, mamãe, que já não fazia boa cara durante as visitas de José, quase tem ofendido o pobre depois que soube quem era sua mãe. Minha boa prima Quitéria, que posso eu fazer ante tão infeliz sorte? Rogo a Deus todos os dias para que meu casamento não seja cancelado…

          Ontem mesmo aconteceu algo muito estranho: mamãe perguntou a José se ele conhecia meu irmão mais velho, José Dilermando Filho, que está estudando em Lisboa. José disse que não o conhecia. E mamãe resmungou que não queria saber de Dilermando frequentando a casa de minha sogra. José e eu não conseguimos entender nada, principalmente porque é notório que Dilermando é filho de papai com sua primeira esposa, falecida no parto, que Deus a tenha. Na verdade, eu achei bem estranho, porque mamãe nunca deu afeto ou atenção a Dilermando que, sem dúvidas, é o filho preferido de papai. Será que madrinha Francisca sabe alguma coisa a respeito disso? Se vosmecê puder, minha boa prima, tente assuntar com sua boa mãe o porquê de sua tia Maria Joaquina, minha mãe, ter tamanha ojeriza a Dona Pilar…

          Prima Quitéria, apesar de tudo isso falta apenas um mês e três dias para meu casamento. Meu vestido de noiva está pronto e tenho dedicado meu tempo a bordar a letra “J” nas peças de meu enxoval. E vosmecê? Como andam os preparativos para seu casamento? Já terminou seu vestido de noiva? Escreva-me e conte-me tudo!

          Bem, queria mesmo desejar um feliz 1.756 a vosmece e sua família. Este ano trará intensas mudanças para nós duas, minha querida prima! Seremos senhoras casadas, donas de nossas casas, escravos e esposas dedicadas e mães zelosas… 

          Fique com o Bom Deus, nosso Pai. Dê lembranças à madrinha.

                                        Com afeto, de sua prima que muito a estima,
                                                                                                 
                                                                                                 Helena.

IV

 
            Arraial do Tijuco, 25 de fevereiro de 1756.
             
  Minha amada irmã Sebastiana,
          Como tem passado estes dias? Vou bem, com a graça do bom Deus. Apenas tenho sentido saudades de vosmecê e de nossa casa, de mamãe, de nossos irmãozinhos. Mas não posso queixar-me da vida de casada. Antes de meu casamento, mamãe me falou das responsabilidades de esposa, pois nós, mulheres, temos a obrigação de dar muitos filhos a nossos maridos, mas não me explicou que era tão difícil e dolorido. José tem sido paciente comigo, o que facilita bastante as coisas.  Afora essas vicissitudes, estou muito ditosa, pois é muito bom ser senhora da casa, dar ordens aos escravos e muito diferente também, já que mamãe sempre cuidou de tudo em casa e agora eu tenho que tomar certas decisões. Com o tempo vou aprendendo a ser como ela.
          Papai esteve nos visitando anteontem e contou-nos que está quase acertando seu casamento. O único problema, como vosmecê já sabe, é o valor do dote. Espero, minha boa irmã, que seu futuro noivo seja tão bom para vosmecê como José é para mim. Peço desculpas, Bastiana, mas penso que este noivo que papai escolheu para vosmecê é um tanto morgadinho, não? 
          Depois de tanta agonia, sem saber se meu casamento seria cancelado ou não, estou desfrutando de uma paz serena. Marvina, a escrava que papai me deu de aniversário, tem sido uma boa companhia e é muito prestativa. Tenho também outras boas escravas, uma delas cozinha muito bem, a Querência. Estas escravas foram importantes para colocar ordem em todo o meu enxoval e nas minhas porcelanas quando aqui cheguei. 
          Apesar de toda essa paz, ainda estou um pouco atormentada com a implicância de mamãe para com minha sogra. É uma senhora tão airosa, tão delicada e amaviosa, que é impossível mamãe não reconhecer nela a dama que é. Procurei Padre Eurico e perguntei-lhe se sabia algo a respeito desta ojeriza de mamãe com Dona Pilar, já que prima Quitéria nada conseguiu saber pela Madrinha Francisca. Padre Eurico deu-me uma penitência enorme por eu ter perguntado isso e eu nem estava em confissão! Ele disse-me que pequei porque quis saber de um segredo de confissão e mandou-me rezar ajoelhada em frente ao Santíssimo duzentos Padre-Nossos e duzentas Ave-Marias durante um mês, o que me faz ficar na igreja um bom par de horas depois da missa! 
          Dona Pilar tem sido muito boa para mim. Vem visitar-me quase todos os dias e ontem mesmo disse-me que não tem filhas e que está se afeiçoando muito a mim, que sou sua primeira nora. Não tenho coragem de perguntar-lhe nada sobre o assunto, porque talvez Dona Pilar não saiba da má-vontade de mamãe e não quero desentendimentos com a mãe de meu marido. 
          Espero vosmecê e mamãe para um chá nas encantadoras chávenas que Dona Pilar trouxe da Europa para mim. Venham conhecer minha casa! José teve a ideia de oferecer um almoço para nossas famílias e vamos convidar também o Contratador João Fernandes e Dona Chica da Silva que, aliás, já veio me visitar. Dona Chica parece que tem uma corte com ela, pois só anda acompanhada de muitos escravos! Todos bem vestidos – Dona Chica disse-me que faz muita questão disso. Ela presenteou-me com uma toalha de rica renda quando esteve aqui. Fiquei admirada e muito feliz por ter a amizade de tão importante dama de nossa sociedade, a Dona Chica da Silva. Que mamãe não saiba disso!
          Minha boa irmã, vou retribuir carinhosamente todo seu esforço em me ajudar a bordar meu vestido de noiva e meu enxoval. Pretendo visitar-lhe pelo menos dois dias no mês para ajudar-lhe com seu vestido. Quero ver vosmecê entrar na igreja bem formosa com seu lindo vestido e a mantilha de mamãe, que apesar de antiga é muito bonita, com um rico bordado! 
          Fique com Deus, Nosso Pai, minha irmã. Dê lembranças à mamãe e diga-lhe que estou à espera de vosmecês aqui em minha nova casa.
                                                                       Com afeto,
                                                                                           Helena.

 V

 

    Arraial do Tijuco, 10 de março de 1756.
Minha amada irmã Helena,
Cartas de Helena 4Como é bom ter notícias suas e saber que vosmecê está feliz e é bem tratada por seu esposo! Aqui em casa, estamos todos muito bem, graças a Deus. Só mesmo mamãe que está impaciente e intolerante como nunca!
Imagine que ela fez-me ler para ela sua carta todinha e, claro, não gostou nada do que ouviu… Disse que aqui em casa ninguém se mistura com a família de José. Bem nessa hora, percebi que papai estava ouvindo a leitura da carta e ele disse bem firme que nunca, em tantos anos que eles são casados, ele obrigou mamãe a fazer qualquer coisa e, portanto, ela estava livre para não ir ao almoço em sua casa. Mas não dava a ela o direito de proibir ninguém de ir, porque vosmecê tem família e ele, que é seu pai, não permitirá que vosmecê passe vergonha diante dos familiares de seu marido. Depois, virou-se para mim e disse que o dia que eu quiser lhe visitar, é para falar com ele, que ele me levará até vosmecê. Mamãe acatou, é claro, mas ficou um par de dias sem me dirigir palavra. Omiti a parte de sua carta em que vosmecê se referia à Dona Chica da Silva, o que foi bem fácil, já que mamãe não sabe ler.
Graças ao bom Deus, papai desistiu de me casar com o filho do Seo Manuel, dono da bodega. Concordo com vosmecê, minha irmã, todas as vezes que o vi achei-o muito morgadinho. Falei com papai que, se ele quiser, podia tentar ver se o Capitão-mor de Vila Rica pensa em casar seu filho do meio, o Sr. João Augusto Pereira. Papai achou graça de mim e disse que sei escolher noivo. Vosmecê deve estar se perguntando de onde eu conheço o filho do Capitão-mor de Vila Rica. Pois dias depois de seu casamento, numa noite chuvosa, o Sr. João Augusto Pereira pediu a papai para se arranchar aqui em casa com sua tropa, que ele estava em viagem para a Bahia. Papai acomodou os tropeiros do Sr. João nos barracões e ele, bom moço de origem, pousou aqui na casa grande. Fizemos um serão
animado e toquei piano a noite toda! O Sr. João Augusto é um moço de belo porte, trabalhador e rico. É com ele que quero me casar! Minha boa irmã, reze para dar certo. Vou gostar de viver em Vila Rica em uma casa grande, confortável e cheia de escravos!
Quem nos visitou há poucos dias foram a Tia Francisca e a prima Quitéria. Vieram trazer o convite de casamento de Quitéria com o Sr. Antônio Torres de Sá Filho. Achei estranho, porque Quitéria não parecia muito feliz em casar-se. Mas vosmecê sabe como é sua madrinha Francisca, facundíssima, não permite que a pobre Quitéria abra a boca. A Tia Francisca contou que todos os enjôos que sentiu passaram e quer que Quitéria se case logo, antes da criança nascer, porque senão ela não poderá comparecer ao casamento de sua única filha, por ter que cumprir o resguardo. A Tia Francisca disse que quer muito ter outra menina, mas Tio Abílio não quer mais mulher em casa, justamente agora que já arranjou casamento para Quitéria! Fiquei com pena de Tia Francisca, porque vai perder a companhia de Quitéria.
Minha boa irmã, vosmecê deixou-me imensamente feliz ao dizer que terei seu auxílio no bordado de meu vestido de noiva! Vou pedir a papai para me levar logo para visitar-lhe, minha irmã, porque a saudade é grande. E então combinamos direitinho em quais dias vosmecê virá aqui em casa bordar comigo. Até porque, esta será a única maneira que vosmecê terá de ver mamãe.
Fique com o bom Deus, nosso Pai, minha querida Helena. E reze para que eu seja a futura senhora João Augusto Pereira.
Com afeto, de sua irmã que a ama,
Maria Sebastiana Gonçalves (Pereira, se Deus quiser).

1 Morgadinho – rapaz exageradamente elegante ou afetado
2 Arranchar – dar pousada, albergar
3 Facundo – eloquente, falador
4 Serão – Reunião recreativa entre pessoas da família ou gente amiga, realizada à noite; passatempo noturno; sarau: um serão dançante para os amigos.
 

VI

 
Arraial do Tijuco, 3 de abril de 1.756.
Minha amada mãe, a sua bênção.
Cartas de Helena 5Espero que esta a encontre com saúde. Sentimos muito a falta da senhora no almoço que oferecemos para nossas famílias há dois domingos atrás. Pelo menos papai e meus irmãos vieram e desculparam-se pela sua ausência devido a uma indisposição.
Escrevo-lhe porque não tenho me sentido muito bem e por isso não tenho ido visitá-la. Todas as tardes tenho tomado semicúpios, pois sinto constantemente fortes cólicas. Tem me faltado apetite e José tem me achado esbatida. Mesmo quando como alguma coisa, verto tudo para fora. É por isso que peço que venha ver-me, querida mamãe. A senhora sempre soube cuidar de minhas enfermidades. Outro dia mesmo tive um deperecimento, mas Marvina veio em meu socorro. Não quis contar nada a José, para não preocupá-lo ainda mais. De sorte que depois de tomar um chá de camomila, a boa Querência disse-me que desconfia que estou a esperar um filho. Será mesmo, mamãe?
Também quero falar-lhe sobre Bastiana, pois ando preocupada com ela. Por isso pedi ao escravo que levou esta carta que a entregasse a papai para que ele a lesse com a senhora. Bastiana nada tem do altivo recato que a senhora nos ensinou com tanto zelo. Ri muito de qualquer chalaça que seu (quase) noivo diz. Este, aliás, parece-me um tanto femeeiro e creio que não seja lá um bom partido para minha irmã. Partilhei com meu esposo de minha preocupação e ele disse-me que o Senhor João Augusto Pereira, apesar de trabalhador e bastante educado, é um tanto frascário. Assim, minha querida mamãe, me senti na obrigação de alertá-la para isso e penso que seria prudente que papai desfizesse qualquer negócio relativo a um possível noivado de Bastiana com este senhor. Há muitos bons partidos em Vila Rica que poderiam ser melhores maridos para minha irmã.
Peço, minha boa mãe, que venha visitar-me assim que puder. Espero e quero ficar boa logo, pois preciso ajudar Bastiana com seu vestido de noiva que, não sendo usado para o casamento com o senhor João Augusto, o será com outro noivo, mais digno de nossa família. Dona Pilar vem sempre visitar-me às segundas e quartas-feiras e se a senhora não quiser vê-la, venha nos outros dias. Tenho bastante apreço por minha sogra, mas sinto um profundo amor pela senhora que é minha mãe e respeito seus sentimentos, mesmo sem saber a razão de sua ojeriza por Dona Pilar.
Aceite esta boceta de doces que Querência fez para me animar, mas só de olhar sinto náuseas. Peço desculpas se minha carta está um tanto dolente, e saiba quero muito vê-la e abraçá-la.
Beijo suas mãos, benévola mãe.
Sua filha Maria Helena Gonçalves Soares.




 

VII

  Arraial do Tijuco, 29 de abril de 1.756.
 
          Minha amada filha Helena, que Deus a abençoe.

          Foi muito bom vê-la e constatar que, de fato, dar-nos-á um netinho. É uma bênção muito grande concedida por Deus, nosso Bom Pai, ver os filhos de nossos filhos. Seu pai escreve esta carta com orgulho de avô, apesar dos últimos acontecimentos aqui em casa, que lhe contarei a seguir.

          Gostei muito de sua casa, que tem um luxo tão nobre e tão sóbrio, e também das escravas mais próximas, embora ainda julgue Marvina um tanto preguiçosa. Percebi o cuidado que Querência tem com vosmecê, como se fosse uma filha, e isso me deixou confortada. Devo admitir que José tem sido bom esposo para vosmecê, minha filha. Apesar de sua origem, é rico e estudado e a trata como a verdadeira dama que é. Tudo isso é um grande alento para minha alma atordoada pelas atitudes insanas de sua irmã, Bastiana.

          Como já deve saber, seu pai desfez o negócio do noivado com o José Augusto Pereira. Bastiana ficou dous dias trancada no quarto, sem comer, nem falar com ninguém. Com muito custo, levei-a à missa no domingo e tive o enorme desgosto de vê-la a rir das chalaças do José Augusto que não sei o que veio fazer aqui no Tijuco. Oh, minha adorada filha! Agora é que vejo o quão boa filha sempre foi para mim! Bastiana só tem me dado desgostos! Primeiro aborreceu-se porque vosmecê esperando filho não poderia ajudá-la com o vestido de noiva, pois além dos incômodos, ainda tem que dedicar-se ao enxoval do neném. E, para piorar, fugiu de casa e demos por sua falta há dous dias… Não sabemos quando ela foi embora e seu pai colocou o feitor Antônio Diabo no seu encalço. Seu irmão Dilermando Filho foi junto. Tive um deperecimento quando soube e estou acamada desde então. Ainda não temos notícias e tenho rezado dia e noite para Santo Antônio ajudar-nos a encontrar sua irmã e para que este infortúnio não se espalhe pelo arraial. Nunca nossa família sofreu tamanho desar! Se alguém mais souber desta desgraça que se abateu sobre nossa casa, nunca mais casaremos Bastiana e suas irmãs mais novas e temo até mesmo pelo seu casamento, Helena. Por isso, peço-lhe que não diga nada a José, nem às suas escravas. 

           Sua madrinha Francisca esteve nos visitando ontem. Esforcei-me para que ela não me achasse esbatida. Sua barriga, como pôde ver, não está muito grande, mal aparece. Disse a ela que creio que terá uma menina, pois está muito parecida com a época em que esperava a Quitéria. Comadre Francisca disse que ficou muito satisfeita de ver vosmecê no comando da casa, que é parecida comigo e que dei provas de que sou muito boa mãe e sei educar e criar filhas recatadas e zelosas com suas obrigações. Isso me doeu n’alma, Helena! Como Bastiana me faz uma coisa dessas? Não disse nada à comadre, porque vosmecê sabe como ela é linguaraz

          Mando um doce de tijolo para vosmecê e para seu marido. Repouse bastante, não pode sentir cólicas ou perderá o neném. Reze por nossa família e para que nada de mal aconteça à sua irmã. Fique com o bom Deus nosso Pai, minha filha, e tome a minha bênção e de seu pai.
 
                                        Sua mãe, Maria Joaquina Pereira Gonçalves.
 

 VIII

  Arraial do Tijuco, 28 de maio de 1.756.
        
Cartas de Helena2
 Minha adorada filha e meu estimado genro,


          Como vão vosmecês? Que esta os encontre sãos e na santa paz de Deus. Helena deve repousar ao máximo e espero que esteja cumprindo devidamente as orientações de sua boa mãe.

          Escrevo para dizer-lhes que a partir desta data Bastiana não é mais nossa parenta – não a reconheço como filha e vosmecês não devem reconhecê-la como irmã. Tomei esta drástica medida como forma de preservar nossas famílias da garrulice alheia. Hoje mesmo pela manhã, o contratador João Fernandes chamou-me a conversar e segredou-me que um de seus homens viu Bastiana em um acampamento próximo à estrada que leva a Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii. O bom homem foi ter com Bastiana e dizer de nossa aflição sobre seu rapto, e ela disse-lhe que não havia sido raptada, mas que havia escolhido ir embora com seu então noivo. Espantado, o homem ouviu e viu que Bastiana se enamorara por um efebo vaganaus e que seguiu caminho com ele, abandonando o Senhor João Augusto Pereira. Nesta hora, vi que Bastiana não passa de uma rascoa e, portanto, não pode ser parte de nossa augusta família. Seguindo o conselho de Helena, eu havia desfeito o contrato de casamento antecipadamente. O prejuízo seria muito maior se ela tivesse se casado.

          Contei para Maria Joaquina sobre o ocorrido e ela teve um deperecimento. Um suor frio tomou conta de todo seu corpo. Está acamada, não come direito e está bastante indisposta e desgostosa. Não se conforma e não sabe onde falhou. Tentei acalmá-la e disse-lhe que não houve falha. Vejamos Helena, uma altiva dama de nossa sociedade, amada e admirada por ninguém mais do que Dona Chica da Silva, a mulher do Contratador João Fernandes. O problema era mesmo Bastiana… Resta-nos elevar nossas preces a Deus para que ela não envergonhe ainda mais nossa família.

          Minha filha amada, peço-lhe que se puder visitar sua mãe, venha. Ela não come nada desde que lhe noticiei o paradeiro de Bastiana. Tenho certeza de que vosmecês possuem bons escravos que possam carregar Helena com o devido cuidado. 

          Despeço-me de vosmecês, com a minha bênção.
                                                                       
                                                            José Dilermando Gonçalves
 

 IX

 
Arraial do Tijuco, 30 de junho de 1.756.
Minha boa Madrinha Francisca, a sua bênção!
Escrevo esta carta, pois infelizmente, encontro-me impossibilitada de visitá-la e à minha nova priminha, Francisquinha. Mamãe contou-me que seu parto foi rápido e tranquilo e agora que Quitéria se casou, a senhora terá a boa companhia de Francisquinha.  Soube também que o Padrinho ficou nervoso quando soube que nascera uma menina, mas comoveu-se quando a viu. Tio Abílio, como sempre, faz tipo brabo, mas tem um coração amoroso, e o nome que escolheu para a menina não podia ser maior prova disto! Soube também que Quitéria está aí para ajudá-la. Por favor, mande-lhe lembranças e diga-lhe que espero sua visita.
Eu tenho que observar repouso absoluto. Mamãe já havia me orientado a repousar, mas José trouxe um médico de Villa Rica que me examinou, confirmou o que mamãe havia dito e me proibiu de caminhar, mais ainda de sair a cavalo ou ser carregada pelos meus escravos. Devo permanecer a maior parte do tempo em meu leito, se não quiser perder o bebê. Às vezes, ando ronceiramente pela casa, amparada por Marvina, que tem se esmerado em cuidados para comigo. Mas ela está engordando muito e tem tido algumas dificuldades em me amparar, de forma que Querência sempre vem em meu socorro. José diminuiu a ração de Marvina e proibiu Querência de completar-lhe a comida… Não gosto disso, Madrinha, pois tenho apreço por Marvina e não é bom vê-la passar fome. Apesar de saber que ela está gorda, sempre divido minhas refeições com ela, principalmente depois que ela teve um deperecimento. Creio que foi fraqueza.
Mamãe está um pouco melhor, graças a Deus! Não quer nem ouvir falar em Bastiana, mas reza noite e dia por ela e por nossa família. Continua sem comer direito e outro dia, quando esteve aqui em casa, achei-a muito magra e esbatida. Mandei Querência fazer uma boa vitamina para nós duas e ela a bebeu sofregamente… Minha Madrinha, peço à senhora, assim que terminar seu resguardo, vá ter com mamãe. Por favor, anime-a um pouco. Diga-lhe que Bastiana sempre foi arrostada e que nenhum de nós tem culpa disso, a senhora bem sabe. José tem sido muito bom genro para mamãe. Ele sempre vai à casa de papai e leva para ela alguns mimos e vez em quando a traz para me ver. Dona Pilar tem sido muito solidária com nossa família, não mudou sua rotina de visitas e tem me auxiliado no enxoval do bebê.  Afora a senhora, – que é irmã de mamãe – e a família do José, – que é muito piedosa e amiga – só mesmo a Dona Chica da Silva e o Contratador João Fernandes se dirigem a nós. José contou-me que não se fala em outra coisa em todo o Tijuco e que muitas famílias nos evitam na rua e na missa. José contou-me que Padre Eurico fez um sermão piedoso e eloquente no último domingo, sobre a natureza humana e o papel da família. Até citou nossa família como exemplo, exaltando a atitude firme e dileta de papai, mas lembrou que o perdão é a maior virtude do cristão e que as famílias todas devem acolher seus filhos pródigos. Mesmo assim, continuamos discriminados. Dilermando Filho, que se enamorou da filha do meio do Capitão-Mor, está proibido de aproximar-se da moça e papai, que já examinava a possibilidade de negociar o casamento, sequer consegue audiência com o Capitão. Talvez Dilermando regresse à Europa…
Há dous dias, Padre Eurico veio me visitar e me dar sua bênção. Disse que tem sentido minha falta à missa, mas sabe que eu preciso repousar e trouxe-me um livro de orações para este período em que não vou comungar. Aproveitou para me confessar e aconselhou-me a respeito de Bastiana. Como sei que ele gosta das quitandas da roça e, de certa forma, já esperava sua visita, mandei Querência preparar uma farta mesa de pitéus5 (como esperado pelo bom Padre) que foram deliciados à exaustão. Espero que ele não tenha passado mal!
Despeço-me da senhora, minha boa Madrinha! Espero que goste da lembrança que mando pelo nascimento de Francisquinha. Quando terminar o resguardo e puder sair com ela, por favor, traga-a aqui em casa para eu conhecê-la.
Dê-me sua benévola bênção,
Sua afilhada,
Helena.
 

X

 

Arraial do Tijuco, 10 de julho de 1.756.

 

Minha querida prima Helena,
Desejo que esta a encontre melhor de saúde e que sua gravidez transcorra mais tranquila. Foi com alegria que mamã recebeu sua carta, minha boa prima! Sabe bem o apreço e o amor que mamã lhe devota, afinal vosmecê é sua afilhada mais querida.
Graças ao Bom Deus, nosso Pai, mamã e Francisquinha passam bem. Vosmecê precisa ver como Francisquinha é linda! Mamã disse que lembra um pouco vosmecê quando era neném, mas vosmecê sabe: os rostinhos dos nenéns mudam em semanas…
Cartas de HelenaEspero poder visitá-la em breve, minha prima. Vai depender se Antônio me deixará ir. É difícil encontrar uma boa hora para falar com meu marido, pois sua costumeira acrimônia nada permite. Para estar esses dias aqui ajudando mamã, papá teve que buscar-me e dizer a Antônio que me casei com ele, mas não deixei de ter família. Oh! Minha amada prima, minha sina não tem sido fácil. Casamento não é assim tão bom e, apesar das boas instruções que mamã me deu, tenho sérias dificuldades em ser mulher. Meus melhores dias são quando me vem a regra e quero muito esperar um filho… Afinal tamanho sacrifício tem de valer alguma coisa, não é mesmo, prima?
Tia Joaquina não tem passado bem, minha prima. Seu papá a trouxe um dia aqui para conhecer Francisquinha e Tia Joaquina chorou muito com mamã. Mamã consolou-a, tentou mudar de assunto, mas o desgosto da Tia é grande demais. Graças ao bom Deus vosmecê está grávida e isso ocupa um pouco a Tia Joaquina. Tenho medo que todas essas contrariedades entisiquem sua boa mãe… Deus que me perdoe, Helena, e longe de mim fuxicar sobre o desar alheio, mas a maneira como ela agiu com vosmecê quando estava noiva… Parece que tudo isso é castigo…
Mamã é mui experiente com escravas e disse que se Marvina está gorda é porque está prenhe. Não fique melindrada com isso, Helena. Sabemos que Marvina é escrava de dentro de casa e que vosmecê jamais esperava que ela emprenhasse. Mas essas negrinhas são todas frascárias, de modo que vosmecê não devia dar tamanha confiança a Marvina – ela pode, inclusive, engraçar-se com seu marido. De modo que mamã disse que se ela estiver mesmo prenhe, foi em boa hora, assim vosmecê já terá uma ama de leite para seu neném. Não a alimente à toa, Helena. Veja mesmo se Marvina emprenhou e dê-lhe alimentos que a façam dar leite, muito leite. Se ela está gorda já é um ótimo presságio. Mamã diz que deve dar-lhe bastante chá de funcho, com tília e poejo e outros chás, como hortelã e erva-cidreira. Também é bom suco de couve, agrião e cenoura. Dê-lhe a comer bastante laranja serra d’água (que é docinha), banana, feijão, amendoim e mel. Antes de dormir, mande Querência dar canjica a Marvina. Assim, minha prima, terá uma boa escrava leiteira para seu filho.
Vosmecê também não deve ficar sem comer, pois é preciso conservar apetite e saúde para que dê à luz um neném forte e saudável. Sei que a espera por um menino é grande, afinal é o primeiro filho de vosmecês. Mesmo se nascer uma menina, creio que vosmecê não terá problemas, pois tem um esposo mui devoto e de mui bom coração.
Vou pedir a papá para falar com Antônio e me levar até sua casa para vê-la. Vosmecê deve estar tão bela, minha prima. Mas, claro, nada superará a beleza que estava vosmecê vestida de noiva, com aquela rica mantilha…
Que Deus ouça minhas orações e lhe conceda boa saúde. Fique com Deus, minha prima.
Com toda a estima,
Maria Quitéria Braga Torres de Sá

 

XI

 

   Arraial do Tijuco, 2 de agosto de 1.756.     
                                                    Minha devotada esposa Helena,
     Espero que esta carta a encontre sã e na paz de Deus, nosso Pai. Chegamos ontem em Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii debaixo de forte chuva. Aqui as matas são exuberantes, deixando a paisagem marítima ainda mais bela. Além disso, apesar da chuva, o tempo é quente e os incômodos são maiores. Amanhã mesmo o Contratador João Fernandes e eu vamos negociar um lote valioso de diamantes com um enviado da Coroa. Pedi ao Contratador para fazermos todo o necessário o mais rapidamente possível, pois não quero me afastar de vosmecê por muito tempo. Além disso, o Contratador também não quer ficar muito tempo fora, já que Dona Chica da Silva está de resguardo do João Fernandes Filho. E nós dois, será que teremos um menino também? 
Cartas de Helena 6     Esperamos concluir as negociações dos diamantes amanhã mesmo. Ficaremos aqui mais dous dias, pois o Contratador quer visitar alguns maganos da região, com o intuito de comprar novos escravos e escravas para Dona Chica. Partiremos domingo depois da missa e chegaremos ao Tijuco em quinze dias. Peço que reze para que tudo transcorra bem em nossa viagem, como foi na ida, mesmo com nossa valiosa carga.
     Não queria escrever-lhe esta carta, Helena, porque sei que espera melhores notícias de Bastiana. Mas o Contratador convenceu-me a escrevê-la, com o argumento de que sua curiosidade e aflição poderiam ser prejudiciais ao neném. Convenceu-me facilmente, já que sua gravidez não tem sido fácil e eu não quero ver vosmecê doente. Também acredito que apesar das notícias não serem exatamente boas, vosmecê poderá ficar mais sossegada.
     Soube que Bastiana deixou o jovem visto pelo homem do Contratador. Soube também que ela é a mulher-dama mais procurada no porto da cidade, pois é mulher de bons modos, jovem, sabe ler e escrever. Fui ter com Bastiana e, surpreso, constatei que ela sente-se feliz e realizada. Quanto mais eu vivo, menos compreendo o que vai n’alma das pessoas… Conversei um pouco com ela e contei-lhe de toda a aflição da família, principalmente sua e de Dona Joaquina. Bastiana disse que seu destino é ser livre como um pássaro, que ela não suportaria outra vida e que não temos que nos preocupar com ela. Doeu-me no coração, Helena, porque infelizmente, constatei o que vosso pai havia dito: Bastiana não passa de uma rascoa. É uma vida humilhante, suja… Contei-lhe que teremos um filho e que sua gravidez tem sido muito difícil, que vosmecê passa a maior parte do tempo repousando. Ela pareceu-me preocupada, mas não disse palavra. Creio que daqui pra frente vosmecê pode ficar mais sossegada em saber que sua irmã vive exatamente como ela quer, não está intrujando ninguém.
     Como vosmecê amorosamente me pediu, pensei a respeito da prenhez de Marvina. Não sei dizer não a vosmecê, minha adorada esposa, de modo que atenderei seu pedido: não venderei o filho de Marvina. Ela será a ama de leite de nosso filho e ficará com o dela, mas se nosso filho não for suficientemente corado e gordo, venderei o negrinho sem delongas.
     Espero que goste da alfaia5 que lhe envio. Combina com vosmecê, delicada e bela. 
     Mantenha o repouso, conforme as recomendações do Dr. Manoel Lopes. Quando voltar, quero ver vosmecê corada e gorda, conservando boa saúde para nosso filho.
Mande lembranças a seus pais e à minha boa mãe que tem ficado com vosmecê todos estes dias que estou fora. 
                         Todo seu, 
                                   José de Arimatéia Soares.
 
 

 XII

 

Arraial do Tijuco, 27 de agosto de 1.756.
Minha querida filha Helena,

Que esta a encontre em melhor saúde.  Mando esta carta porque os últimos dias têm sido difíceis e passamos a maior parte do tempo junto de sua madrinha Francisca e de Quitéria. Foi um infortúnio, uma verdadeira desgraça que se abateu sobre nossa família.  Vosmecê já deve saber que o marido de Quitéria está preso. Estamos todos ainda inconformados com o ocorrido, sua madrinha Francisca está inconsolável, viúva, com muitos filhos e uma filha casada com o assassino do próprio pai…  Pelo menos os irmãos mais velhos de Quitéria são homens honrados de nossa sociedade e têm cuidado de tudo. Além dos filhos homens, sua madrinha Francisca jamais estará desamparada porque tem a nós, graças a Deus…

Seu pai concluiu que sendo ele o homem mais velho e respeitado de nossa família, nesse momento, sua ausência poderia ser mal vista e por isso enviou seu irmão Dilermando para consultar o Bispado em Mariana sobre a possibilidade de anular o casamento de Quitéria. Segundo informações do Padre Eurico, a Igreja pode aceitar o pedido de anulação do casamento, pois há diversas testemunhas do assassinato de seu tio Abílio pelo Antônio Sá e da rudeza com que ele tratava Quitéria, embora jamais um casamento tenha sido anulado por este motivo.

Tenho agradecido a Deus todos os dias, porque talvez Bastiana tivesse se casado com o Antônio Torres de Sá Filho. Já não sei mais qual desgraça é maior… Graças a Deus, vosmecê está casada com um homem digno e educado, apesar de tudo… A pobre Quitéria, machucada e triste, não diz palavra. Viveu um casamento fementido, enquanto o Antônio Sá conseguiu intrujar a todos. Por vergonha e medo, Quitéria não contou a ninguém o que se passava em sua casa. Pobre rapariga! Vive pelos cantos com o olhar fixo e cabisbaixo, as lágrimas já secaram e ela, com toda sua mocidade, parece uma avó de quarenta anos, em meio a soluços e a aparência maltratada… Está magra como nunca e muito pálida, pois assim que ela voltou para sua casa – dias depois que o umbigo de Francisquinha caiu, o tal Antônio Sá deixou-a uma semana sem comer, nem beber nada, nem água, além das surras diárias que levava. Suas escravas, aterrorizadas e muito castigadas, não se atreveram a desobedecer a ordem de seu senhor, mas uma delas conseguiu avisar seu tio para ir visitar Quitéria. E foi então que tudo aconteceu. Oh, Deus! Seu padrinho Abílio não tinha ideia do quanto este homem era violento. Encontrou a filha muito machucada, com o rosto inchado, cheio de hematomas, sem conseguir andar direito e foi tirar satisfações com o tal Antônio, pois não tinha criado filha mulher honrada para ser esbordoada por homem nenhum. Encontrou-o no bordel da cidade, perto do engenho, bêbado, e o homem não teve piedade: atirou mortalmente no próprio sogro. Mesmo bêbado, conseguiu fugir, mas não foi muito longe: o Capitão-Mor prendeu-o na tarde do dia seguinte. Parece que será condenado à forca, mas tememos a influência de sua família junto à Corte, em Portugal. Felizmente temos o apoio do Contratador João Fernandes e esperamos que El Rey apóie sua decisão…
Sua madrinha Francisca, inconformada, chora todos os dias.

Francisquinha fica todo o tempo com sua ama-de-leite e a comadre nem a vê… Quitéria, em seu estado lastimável, segredou-me que sente vergonha de todos. Disse a ela que sua sogra e o resto da família do Antônio Sá é que não têm tido coragem de aparecer no arraial – foram para Serro do Frio – e que ela e sua família têm o respeito e a piedade de todos. Não foi escolha dela o casamento com o Antônio Sá e, infelizmente, seu tio Abílio pagou por isso com a própria vida. Tenho muita pena de Francisquinha que crescerá sem pai, um pai tão bom e tão amoroso, como foi para Quitéria…

Ainda assim, não se preocupe, minha filha, porque elas entendem sua situação e estamos dando todo esteio necessário. Vosmecê conhece bem sua madrinha Francisca e sabe que em pouco tempo ela se recuperará de toda essa desgraça e voltará a encher nossas vidas com seu sorriso ledo e seu jeito palreiro. Mantenha-se em seu repouso, mas se puder, escreva para Quitéria. Ela precisa muito compreender que não tem culpa do ocorrido, de que é jovem e que agora está de volta junto à sua família e que o assassino de seu pai terá o castigo que merece e passará a eternidade queimando no fogo do inferno.
Reze o terço e peça proteção a Nossa Senhora do Rosário. Seu irmão Agostinho escreve esta carta e manda lembranças a vosmecê e a seu marido, José.

Fique com o bom Deus, nosso Pai e que Ele te abençoe.

Sua mãe,
Maria Joaquina Pereira Gonçalves

 XIII

 

Arraial do Tijuco, 10 de setembro de 1.756.
Minha amada prima Quitéria,
Sinto-me atordoada por não poder estar ao seu lado nestes dias difíceis. Que Deus lhe abençoe e lhe dê consolo para sobrelevar-se deste tempo ruim.  Conte com minhas rezas, amada prima.
Cartas de Helena 7Sei que mamãe tem estado com vosmecês todo o tempo. E eu queria estar aí com ela, mas como vosmecê bem sabe, preciso guardar repouso absoluto.  Estou enorme e um pouco inchada e José vai trazer de novo aquele médico de Villa Rica para me ver. José tem sido a melhor das companhias.  Devotado, lê as cartas que recebo e escreve as respostas para mim, além de rezar o terço comigo três vezes ao dia. Sua mãe, Dona Pilar também tem sido minha zelosa e constante companhia. Passamos as tardes bordando o enxoval do neném, enquanto a Custódia, a negrinha com que me presenteou há alguns meses, costura as peças do enxoval.
Soube que papai, juntamente com Dilermando e seus irmãos, estão cuidando de tudo e se Deus, nosso bom Pai permitir, vamos todos assistir ao enforcamento do maldito em praça pública em breve. O Contratador João Fernandes tomará todas as providências para que isto ocorra, fique sossegada.
E Madrinha Francisca? Papai esteve aqui e contou-me que ela e vosmecê estão mui esbatidas. Prima, por favor, se alimente. Vosmecê é tão jovem e tão bela, precisa conservar saúde para ajudar sua boa mãe. Vosmecê não tem culpa do que aconteceu e, como mamãe bem disse, meu bom Tio Abílio (que Deus o tenha junto de Si) pagou pelo erro com a própria vida. Vosmecê também é vítima de tudo isto, prima.
Como vosmecê sabe, Marvina está prestes a dar à luz seu filho. Tenho tomado todos os cuidados que vosmecê me aconselhou e Marvina já não sente mais fraqueza. Consegui convencer José a não vender seu filho.  Não a queria sofrendo enquanto fosse ama de leite de meu neném e, sendo Marvina tão zelosa comigo, creio que não vai faltar leite para nosso neném.
Padre Eurico esteve me visitando e trouxe-me um livro de orações novo. Aproveitamos e marcamos o casamento de Marvina com o Graciano, escravo de nossa fazenda, pai do filho dela. Foi difícil arrancar-lhe a confissão, pois ela temia que seu amado fosse castigado. Embora ambos merecessem, José prometeu-lhe aliviar o castigo de Graciano e, mais importante, prometemos que eles se casariam conforme a Lei de Deus. De modo que José não açoitou Graciano, apenas o deixou dous dias sem ração e trabalhando duas horas a mais que os outros escravos. Foi a maneira educativa que José pensou, sem faltar com sua honrada palavra, para mostrar aos outros escravos que erros de conduta não são perdoados, deixando claro que o castigo de Graciano foi leve a meu pedido, já que Marvina é escrava de minha afeição. Infelizmente, Marvina é um tanto papalva e José e eu acreditamos que ela caiu na lábia do Graciano. Está apaixonada e não vê que ele quis apenas aproveitar-se dela, mas estamos procurando reparar o erro. É só uma menina, a Marvina…
De minha parte, tenho tomado os cuidados que vosmecê, Madrinha Francisca, mamãe e o médico me recomendaram. Venho andando um pouco dispéptica, mas mamãe já me havia prevenido que isto aconteceria. Tudo o que quero é que meu filho nasça com saúde e que eu recupere a minha para estar ao lado de vosmecês.  Ainda nem conheci Francisquinha e já a quero tanto bem…
Não diga nada à mamãe e à Madrinha, Quitéria, mas José me disse que agora Bastiana é mulher dama. Ele teve oportunidade de conversar com ela naquela viagem a Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii. Oh! Que tristeza! Acho que mamãe morrerá de desgosto se souber. Mas Bastiana está feliz… Custa-me entender como ela gosta de uma vida tão diferente. É uma moça tão prendada, educada, fina como nós… Rogo a Deus todos os dias que nada de mal aconteça a ela…
Mantenha-se firme na fé e devoção, minha amada prima. Deus nosso Pai certamente reserva uma vida melhor para vosmecê. Rezo por todos e espero vê-la em breve com toda sua beleza e graça altiva.
Mande minhas melhores lembranças à Madrinha Francisca.
Sua prima que lhe ama e lhe quer bem,
Helena.

XIV

 

Arraial do Tijuco, 2 de outubro de 1.756.
Amada filha,
          Deus lhe abençoe.  Não pudemos comparecer ao casamento de Marvina, na capela de sua fazenda. Sua mãe tem passado os dias em companhia de sua Madrinha Francisca e eu tenho me ocupado com o julgamento e enforcamento do Antônio Torres de Sá Filho e a anulação do casamento de Quitéria. Quem nos deu recentes notícias suas foi o Padre Eurico – sempre zeloso com seu rebanho – que nos contou o quanto vosmecê é uma dama digna e fervorosa. Também soubemos que o filho de Marvina já nasceu. Dizem por aqui que é um negrinho esperto, bem dotado e que certamente será bom trabalhador nas minas. Só esperamos que ele não saia tão fementido e femeeiro como o pai, Graciano. Folgo em saber que lhe escolhi um bom e devotado marido, com uma família igualmente devotada. Soube que José e sua mãe têm lhe feito companhia e zelado cuidadosamente por sua saúde. Isso também tranquiliza sua mãe que, apesar de seu gênio difícil e acrimônia em relação à família de seu marido, tem aceitado bem, já que neste momento sua Madrinha Francisca ainda encontra-se bastante atordoada e esbatida.
Seu irmão Dilermando segue viagem amanhã para São Sebastião do Rio de Janeiro e em vinte dias deve embarcar para Lisboa. Gosta de viver na metrópole e quer trabalhar como advogado. Isso será muito proveitoso para nossos interesses aqui no Tijuco, mas por ora, perdi meu braço direito para solucionar estas questões mais urgentes de nossa família.
Sua mãe pede que eu lhe conte sobre a decisão de Quitéria.  Amanhã ela está partindo para São Salvador da Bahia de Todos os Santos onde, a conselho do Padre Eurico, passará a viver no Convento da Lapa, junto às irmãs franciscanas da Ordem das Capuchas Recoletas. Apesar de surpresos, todos respeitamos sua decisão e a consideramos madura e consciente. Sua Madrinha Francisca é que não está muito feliz; anda dizendo que perdeu o marido e agora perde a filha. Mas entendemos Quitéria: ela não quer ter que encarar a piedade de todos do Arraial a vida toda, pelo grande desar de sua mocidade. Está convicta de que é melhor passar o resto da vida rezando pela remissão dos pecados do mundo, em luto permanente pelo pai.
Se as cousas se sucederem como devem, acreditamos que até o final deste mês o Antônio Torres de Sá Filho deverá ser enforcado em praça pública. É castigo pouco para o mal que causou à nossa família e à sociedade do Tijuco, devendo pagar com a própria vida. Não se tem mais notícias de sua família. Saíram de Serro do Frio e ninguém sabe para onde foram. Só esperamos que não atrapalhem o julgamento do réu.
Fique com o bom Deus, minha filha, e dê lembranças ao seu marido, José. De acordo com sua mãe, seu filho deve nascer no próximo mês e ela deve estar com vosmecê nessa hora. Sua mãe recomenda que vosmecê reze o terço todos os dias.
Deus lhe abençoe.
Seu pai, José Dilermando Gonçalves

 XV

 

  Arraial do Tijuco, 26 de novembro de 1.756.

                  
  Amado filho,

          Deus lhe abençoe.  Folgamos em saber que chegou bem a Lisboa e já está instalado em uma boa casa. 

          Sua irmã Helena deu à luz uma linda menina. Foram duas noites (mais de 40 horas) de parto agonizante, que mobilizou Dona Pilar, Maria Joaquina, Comadre Francisca e a escrava Querência ajudando a parteira, a negra forra Juliana.  Todas foram unânimes em contar a bravura e fé de Helena. Após o parto, Joaquina e a Comadre Francisca deram os primeiros cuidados à neném, enquanto Dona Pilar, Querência e a parteira cuidavam de Helena, dando-lhe chás e banhos tépidos. 

Cartas de Helena 8          Helena melhorou e conheceu a filha. Como se parece com ela! José, bom marido e pai zeloso, chorou emocionado ao pegar a filha nos braços, ainda roxinha e frágil do esforço do nascimento. Marvina, tão logo a viu, precipitou-se a dar-lhe o peito. Mas a febre de Helena não passava. Joaquina e Dona Pilar não se afastaram dela um minuto sequer. E fizeram as pazes. Sofregamente, Helena sorriu ao ver as duas conversando e disse que as amava. 

          Essa é uma história que faz parte de sua vida, meu filho, mas mantivemos segredo para não sujar a honra de nossas famílias. Vosmecê é irmão de Helena e de José, pois Dona Pilar é sua verdadeira mãe. Meus pais se comprometeram em me casar com Maria Joaquina, mas meu coração, minha vida, minha devoção eram de Pilar. Desse amor nasceu vosmecê, meu filho, mas os pais de Pilar, no desespero de esconder tudo e não manchar sua honra, a levaram embora para Portugal, deixando-o recém-nascido com meus pais que já haviam me mandado para São Salvador da Bahia de Todos os Santos. Foi então que decidimos dizer que vosmecê é fruto de um casamento anterior e que eu era viúvo quando me casei com Joaquina. Joaquina, sempre muito perspicaz, soube de tudo e nutriu um ódio ferino por Pilar por toda a vida. Nunca conseguiu sentir amor por vosmecê, que não tem culpa dos erros alheios do passado. Mas no momento em que Helena agonizava e delirava de febre, Dona Pilar demonstrou toda sua gratidão por Joaquina ter criado vosmecê. Joaquina, fragilizada pelo estado de Helena, chorou muito e também agradeceu a Dona Pilar por cuidar de Helena e amá-la e pediu-lhe perdão por não ter conseguido amar vosmecê como a um filho. 

          Peço que me perdoe, amado filho. Mas caso não tivéssemos feito assim, creio que vosmecê seria alvo do preconceito da sociedade, tido como um filho bastardo quando, para mim, vosmecê sempre foi a mais pura e verdadeira expressão do amor. 

          Infelizmente, Helena veio a falecer dous dias antes de seu aniversário de dezesseis anos.  José está inconsolável e decidiu que a filha deles se chamará Helena, em homenagem à mãe. Dona Pilar e Joaquina choram pelos cantos, mas devotam um amor puro pela netinha. Eu não sei mais de onde tirar forças diante de tantos tormentos, mas confesso que é um consolo olhar para a face inocente de Heleninha.

          Muita gente veio ao velório e ao enterro de Helena. Foi anunciada a presença de um Conde e uma Condessa de Monsanto, o que nos surpreendeu – não esperávamos ninguém da Corte.  Surpresa maior tivemos quando vimos que a tal Condessa era ninguém menos que Bastiana. Joaquina teve um deperecimento e eu não caí porque José estava por perto e me amparou.  Bastiana chorou copiosamente ao ver Helena morta e depois, mais calma, contou que o Conde de Monsanto pediu-lhe em casamento depois de conhecê-la no cais do porto de Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii. Ela disse que não queria viver presa a ninguém e o Conde ofereceu-lhe diamantes e ouro. Ela, que sempre viveu rodeada de ouro, diamantes e outras pedras preciosas, disse-lhe que sua liberdade valia muito mais do que a sua oferta. O Conde insistiu, dizendo que lhe daria tudo o que ela quisesse. Foi então que Bastiana decidiu fazer uma lista de exigências. Se o Conde concordasse, se casaria com ele. Pois o Conde concordou e o único pedido que fez a Bastiana foi que queria conhecer sua família. Pois eles chegaram ao Tijuco no dia em que Helena estava sendo velada.

          Quem também está inconsolável é Dona Chica da Silva. Ninguém sabe explicar o amor que ela sempre devotou a Helena. Todos pensamos que ela gostaria de ser uma dama como nossa Helena era: bela, delicada, altiva, digna e devotada.

          Padre Eurico fez um sermão piedoso e emocionado. Batizou Helena, deu-lhe a primeira comunhão, fez seu casamento… Disse, emocionado, que jamais pensaria em dar-lhe a extrema unção e tampouco enterrá-la no frescor de sua mocidade. Mas quem somos nós ante os desígnios de Deus?

          Como esperávamos, a família do Antônio Torres de Sá Filho contactou a corte em Portugal interferindo na sentença do assassino de Abílio. Para nossa sorte, quando chegou o mensageiro de Portugal, o réu já estava morto – o contratador João Fernandes tem autoridade para decisões sobre sentenças de crimes. Se não fôssemos ágeis o bastante, ainda teríamos este problema em nossas vidas.

          Esperamos que com estas notícias vosmecê volte para o Tijuco. Sua mãe, Dona Pilar, não vê a hora de abençoá-lo como filho e pedir-lhe perdão por não ter ficado com vosmecê, por não ter tido coragem de enfrentar seus pais e a sociedade. Boa parte desta culpa é minha, que saí praticamente fugido para a Bahia. Éramos muito jovens e nada sabíamos da vida… Espero que me perdoe, amado filho.  Estes anos todos procurei ser o melhor pai, mas sei que nada substituirá a falta que sua verdadeira  mãe lhe fez.

          Deus lhe abençoe. Reze por todos nós.

                                                       Seu pai que o ama,

                                                                     José Dilermando Gonçalves.
 
 

2 Responses

  1. Maria do Carmo disse:

    Espetáculo! A gente mergulha no ambiente da época. Parabéns!!!

  1. 07/27/2014

    […] Mendes, Cartas, Eça de Queirozadmin Algumas pessoas sugeriram-me transformar a série “Cartas de Helena” em livro. Talvez… Pode ser que dê um bom romance epistolar.  Acontece que preciso […]