Mais homem, menos Deus

Detesto promessas de Ano Novo. Não porque não as cumprirei, mas porque fazem tudo parecer artificial: já que é ano novo, vou ter uma vida mais fitness; vou parar de beber; vou emagrecer; vou parar de fumar (clássica); vou ser uma pessoa melhor etc. Não funciona bem assim, mas a época é propícia a reflexões. Pois foi justamente na época do Ano Novo da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2020, que li O evangelho Segundo Jesus Cristo, do Nobel português José Saramago, ainda no furor da repercussão do especial de Natal da Porta dos Fundos, exibido pela Netflix.

Saramago criou seu próprio Jesus. Fez uma ambientação primorosa, um estudo profundo dos costumes judaicos, da geografia da Judéia, de Belém, de Jerusalém, de Magdala etc. Criou um personagem mais humano e menos Deus, mais gente, vamos assim dizer. Foi a maneira que o autor, por sinal ateu, encontrou para questionar os dogmas judaicos e cristãos e, por que não dizer, para criticar todas as religiões.

O autor nos apresenta reflexões riquíssimas. Bem no início do livro, descreve um quadro da crucificação de Cristo e já mostra o que pretende nos despertar. Afirma que o mau ladrão estava certo: não é um último minuto de arrependimento que vai garantir o perdão por uma vida inteira de maldades. Diz que “ninguém pode saber quando o nome de Deus é pronunciado em vão” e deixa claro que o único capaz de julgar isso é o próprio Deus.

O Diabo é ótimo, quer dizer, é uma figura, um personagem realmente interessante, tanto quanto Deus e o próprio Jesus. Em boa parte do livro, o personagem de destaque é José, o pai do menino-Deus. Suas reflexões, seus atos, omissões e culpas interferem, de algum modo, no Jesus saramaguiano. Maria é uma mulher comum, que sofre não por ser mãe do filho de Deus, mas simplesmente por ser mulher e, depois, uma viúva cheia de filhos para criar. Se hoje em dia o mundo é muito hostil para as mulheres, imaginem há 2.000 anos!

O livro, por vezes, nos aproxima de nós mesmos, tão fortes e profundas são as reflexões que Saramago nos impõe. Num mundo e numa época onde tudo é fácil, estamos deixando nossa humanidade de lado: “muito desgraçados somos nós, que não nos chega praticarmos a parte de mal que nos coube por natureza, e ainda temos de ser braço da maldade de outros e do seu poder”. Eis um resumo e a mais verdadeira definição da nossa época, quiçá de todas, porém as facilidades que temos hoje em dia, assim como o domínio das corporations e de alguns governos sobre nossas vidas, nos manipulando sei lá como, nos torna mais suscetíveis a exercer esse papel.

Em tempo de fake news, nome pomposo para a mentira que toma grandes proporções ao se espalhar à velocidade da luz, “nenhuma salvação é suficiente, qualquer condenação é definitiva”. Condena-se, sem possibilidade de salvação, quem quer que seja que não esteja de acordo com a linha de pensamento de determinado grupo. Discutir ideias é coisa do passado. Nessas primeiras décadas do século XXI, o mundo, especialmente o Brasil, carece de líderes com bom repertório de ideias, de raciocínio. Talvez até existam, mas devem estar condenados por alguma corrente de pensamento contrária aos seus ideais.

Comparativamente à obra O evangelho segundo Jesus Cristo, o especial de Natal do Porta dos Fundos torna-se ainda mais medíocre (devido à polêmica, senti-me na obrigação de assistir; a duras penas, suportei 25 minutos). O Jesus ali criado, assim como outros personagens, é uma cópia fiel de personagens de humorísticos da maior rede de TV brasileira, dos quais já estamos fartos. Ao especial faltou criatividade e sobraram clichês. A arte nos dá a liberdade de criarmos como quisermos, mas originalidade é essencial, da mesma forma que o respeito às crenças do próximo; é ele que pode ser influenciado (para o bem e para o mal).

Em seus inúmeros questionamentos ao longo do Evangelho, José Saramago não desrespeita nenhuma crença, entretanto coloca seu ponto de vista de forma original, verdadeiramente artística, com beleza e poesia. O especial do Porta dos Fundos é grosseiro e sem graça, é mais do mesmo, sem arredar pé do mainstream. Naturalmente, nada disso seria motivo para censura. Trata-se apenas de mais uma produção que merecia seu lugar na escória das produções artísticas, sem audiência, sem repercussão.

Quem quiser conhecer um Jesus nada a ver com a Bíblia, leia O Evangelho segundo Jesus Cristo e veja o que é arte de verdade.

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Por essas e muitas outras, vale a pena ler O Evangelho segundo Jesus Cristo:

“É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”;

“O dia de amanhã não se sabe a quem pertence, há quem diga que a Deus, é uma hipótese tão boa como a outra, a de não pertencer a ninguém, e tudo isso, ontem, hoje e amanhã, não serem mais do que diferentes nomes da ilusão”;

“O homem é semelhante a um sopro, os seus dias passam como a sombra, qual é o homem que vive e que não vê a morte, ou poupa a sua alma escapando à sepultura”;

“Talvez os homens nasçam com a verdade dentro de si e só não a digam porque não acreditam que ela seja a verdade”;

“Acontece isto muitas vezes, não fazemos as perguntas porque ainda não estávamos preparados para ouvir as respostas, ou por termos, simplesmente, medo delas”;

“Uma árvore geme se a cortam, um cão gane se lhe batem, um homem cresce se o ofendem”;

“Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes”.