Conto de Natal

É uma história sem graça
Essa que vou lhes contar
Mas pode até ser bonita
Depende do seu olhar
Quem sabe ela não inspira
Alguém que procura amar?
 
Nasceu numa noite quente
Uma mirrada menina
E naquela madrugada
Foi chamada Severina
Fraca, a mãe sucumbiu
Cumprida estava a sua sina
 
Teve uma irmã que a alimentou
Severina ficou forte
Cresceu na dificuldade
Não morreu por pura sorte
Ou a piedade divina
Que lhe deu um passaporte
 
Era criança calada
Só clamava por comida
Mesmo o choro era em silêncio
Guardava suas feridas
Nada sabia desse mundo
Mas se compreendia sofrida
 
Três anos tinha a menina
Quando teve a confusão
O bando de Virgulino
Fez ali um arrastão
Morreu a irmã querida
Nem pôde ter um caixão
 
Quieta ficou Severina
Sem entender a desgraça
A morte fazia a ronda
Numa nuvem de fumaça
Teve fome e chorou alto
Ao seu redor, só carcaças
 
E então veio outra surpresa
De novo, uma saída
Pelo rastro do cangaço
Vinham mulheres da vida
A cafetina se encantou
Pela criança perdida

A menina foi com ela
E começou novo enredo
O passado ficou morto
A vida não é brinquedo
Nova mãe, novos amigos
Novos sonhos, novos medos
 
Não era mais Severina
Mãe Joana não gostava
Nina era agora o seu nome
Para ela, não importava
Tinha comida e carinho
De nada mais precisava
 
A vida com mãe Joana
Era até bem divertida
Sua tenda era bonita
E ela andava bem-vestida
Tinha um tanto de brinquedo
Era muito protegida
 
Mas o que é bom sempre acaba
O bando do Lampião
Fora pego de surpresa
Sem dó, tampouco perdão
Terminara o cangaço
Acabou a diversão
 
A polícia levou Nina
Acharam-na bonitinha
O coronel se encantou
Por aquela garotinha
Era de novo o destino
Que em seu favor intervinha
 
Nina era agora a princesa
Da vida do coronel
Tinha pai, mãe, sete irmãos
E se chamava Isabel
Mais uma reviravolta
É cumprido esse cordel!
 
Bel era muito feliz!
Quando aprendeu a rezar
Agradecia ao bom Deus
A família e seu lar
Nunca faltava à escola
Era esperta pra danar
 
Tocava bem o piano
E era exímia cantora
Sua voz era de um anjo
Encantava a professora
Cresceu muito dedicada
Sentia-se vencedora
 
Ao completar quinze anos
Seu pai estava orgulhoso
Bel ganhou uma grande festa
Foi um dia glorioso
Mas durante o jantar
Soube que teria um esposo
 
As luzes se apagaram
E seu mundo escureceu
O pretendente era um velho
O coronel Cirineu
Outra triste desventura
Em sua vida se abateu
 
O casório foi marcado
Ela nem tinha enxoval
Sua alegria murchou
A tristeza era real
Viu que a mãe também chorava
Previa a vida infernal
 
Bel fazia sua mala
Seu destino iria cumprir
Mas os caprichos da vida
Ninguém pode coibir
A mãe lhe trouxe dinheiro
E a ajudou a fugir
 
A menina agora moça
Pra Recife foi sozinha
Chegou na cidade grande
Foi passear na pracinha
Naquela primeira noite
Já conheceu a Rosinha
 
Rosinha era moça safa
A mais bonita mulata
Ao ver o drama da outra
Resolveu levar a novata
Para ajudar na limpeza ou
Fazer comida barata
 
Eis que a nossa heroína
Entrou naquele bordel
Reconheceu que o lugar
Não era bem um hotel
E ela ficou matutando
Qual seria o seu papel?
 
Foi levada à senhoria
Mas a velha cafetina
Não conteve a emoção
Ao reconhecer a Nina
O único amor que tivera
Logo essa história termina
 
Bel cantava toda noite
Também tocava piano
Tudo estava em seu lugar
Assim viveu muitos anos
O destino então mostrou
O tanto que era tirano
 
A mãe Joana morreu
Gargalhava e caiu dura
Bel chorou a noite toda
Quanta dor, quanta amargura
Não era mais uma criança
Precisava ter bravura
 
Ainda sentia a perda
De sua mãe tão querida
Descobriu que era a herdeira
Da fortuna sem medida
Que a mãe Joana juntou
Durante a vida sofrida
 
Hoje, ao pôr o menino
No presépio do orfanato
Pede que todo vivente
Conheça o amor de fato
Que ela use todo o dinheiro
Para o bem imediato
 
Termino aqui, meus amigos,
Essa história sem graça
Que o bom Deus nos abençoe
E que a paz que nos enlaça
Nos renove no ano novo
Na festa sem uva-passa!