Presos ao século XX

Presos ao século XXEssa crise toda de abastecimento ocasionada pela greve dos caminhoneiros por motivos estranhos — quiçá discutíveis — expõe um problema brasileiro que não vi a imprensa discutir: a concentração da distribuição de produtos no transporte rodoviário.

Alguma coisa está muito errada há muito tempo. Na década de 1950, nos anos JK, o governo decidiu apostar completamente no transporte rodoviário, subsidiando a vinda de empresas automotivas. Em que pese a quantidade de empregos gerados, para um país do tamanho e com a diversidade do Brasil, hoje vemos — e sentimos na pele — que foi um big mistake concentrar toda a distribuição de cargas em caminhões. E, sabem como é, em se tratando de decisão política, nesse nosso país, ficamos com os dois pés atrás sobre a motivação de uma deliberação tão importante e tão impactante.

O resultado de décadas de políticas de infraestrutura e de transportes equivocadas está aí: já começa a faltar comida em mercados, postos de combustíveis e aeroportos fechados, transporte público — majoritariamente composto por ônibus e não trens — parado, coleta de lixo já está sendo afetada, escolas fechando.

Um terço da atual malha ferroviária brasileira ainda é do tempo do império. Mais de um século depois da “proclamação” da república, pouco avançamos na construção de ferrovias. Em compensação, há muitas rodovias, e o transporte de cargas e de passageiros é majoritariamente rodoviário. Com as nossas dimensões continentais, temos menos de 30 mil km em ferrovias. Já em rodovias, são cerca de 6,5 milhões de km, sendo menos de 70% pavimentadas.

Grande parte dos trens brasileiros transporta minério de ferro para exportação. Leva o ferro até o porto e, em geral, volta vazio. Pode-se dizer que a produção agropecuária brasileira escoa todinha por rodovias, quase nada por trens. E esses, tampouco, levam bens e produtos importados para o interior. Segundo dados do IBGE de 2015, apenas 21% da carga transportada pelo país utiliza a malha ferroviária. A título de comparação, nos Estados Unidos, 50% da produção é escoada por ferrovias. E usei esse exemplo por uma simples razão: semelhança no tamanho territorial.

A construção de ferrovias é cara, verdade seja dita, mas paga-se no curto-médio prazo: enquanto uma carreta é capaz de levar até 30 toneladas, um trem pode levar 100 vezes mais carga. Portanto, o transporte ferroviário é bem mais econômico. E é mais seguro também: o maquinista não precisa se drogar para se manter acordado e entregar a carga a tempo, por exemplo. Acidentes podem acontecer, mas são mais raros, tipo acidente de avião. Acidentes e mortes em rodovias, por outro lado, dispensam mais comentários. As estatísticas são divulgadas periodicamente, é só pescar na internet.

O que estamos passando hoje, no Brasil, além das políticas de transportes e de infraestrutura equivocadas por décadas, é também resultado da recessão ocasionada pela corrupção e pela incompetência dos últimos governos. Ora, se o país vive em recessão, o volume de negócios diminuiu sobremaneira, principalmente em relação à pujança do início dos anos 2000. Com isso, toda a cadeia é afetada, incluindo o frete de produtos. A diminuição do volume de carga a ser transportado atingiu os caminhoneiros e as empresas transportadoras em cheio: simples lei da oferta e da procura — muita oferta de frete para carregamentos cada vez menores.

Outro problema do Brasil é o atraso tecnológico — já está virando clichê dizer isso, paciência. É evidente que as ferrovias de hoje em dia exigem mais tecnologia, o que aumenta o custo, mas também a eficiência. A eletrificação de trens já não é mais uma tendência, é realidade que deve ser considerada e implementada. Se quisermos ser o país do futuro, temos que abandonar esse passado de estradas e de uso de combustíveis fósseis — quer coisa mais do passado do que isso? — e buscar alternativas mais modernas, econômicas e ecológicas.

Francamente, estamos cada vez mais presos ao passado: obsoletos tecnologicamente e sem a menor condição de mudar isso no curto-médio prazo. Estamos com infraestrutura do século XX, e demandas do século XXI. Resultado: caos!

Bom fim de semana procês!