Originalidade, beleza e protesto

 

Originalidade, beleza e protestoHá pouco mais de um ano participei de um grupo de discussão filosófica, e o tema era arte, a partir da perspectiva levantada pelo badalado filósofo Roger Scruton. Para ele, no século XX a beleza deixou de ser importante, e a originalidade e a quebra de tabus passaram a ditar o que era arte. Concordo em parte com Scruton. Acho que ele deveria conhecer nossas escolas de samba, que provam que originalidade, beleza e protesto podem caminhar de mãos dadas.

Os momentos de dificuldades geram as melhores respostas dos artistas. Na época da ditadura militar, por exemplo, foram criadas e cantadas belíssimas canções da nossa MPB. Notadamente Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Caetano Veloso compuseram e interpretaram os maiores clássicos do cancioneiro nacional — na minha modesta opinião, claro. Tiveram que ser muito originais, criativos e inteligentes para protestar em forma de poéticas metáforas.

Hoje em dia, em que o mar não está pra peixe na nossa política, corrupção pra todo lado, sem o mínimo pudor (e aqui um parêntesis para expressar minha decepção com o Chico cidadão), as escolas de samba mostraram ao mundo um protesto espetacular. A campeã e a vice desfilaram com muita beleza e cor o Brasil e suas mazelas e amarras.

A campeã Beija-Flor, com o samba enredo “Monstro É Aquele Que Não Sabe Amar (Os Filhos Abandonados da Pátria Que Os Pariu)”, falou de todos os políticos do Brasil que abandonaram o povo ao léu. A realidade da violência — que é horrível —  foi mostrada em carro alegórico com muita criatividade e beleza. O brado do samba, “Seus filhos já não aguentam mais!”, foi um brado de todos os brasileiros.

A corrupção, a verdadeira mãe de todos os males, foi representada com réplicas dos eventos e personagens da vida real: teve até a farra dos guardanapos, com direito a Sergio Cabral e Adriana Ancelmo e suas joias “lavadas”. Tudo muito lindo, ainda que triste, “Mas o samba faz essa dor dentro do peito ir embora / Feito um arrastão de alegria e emoção o pranto rola”, como diz o verso.

A vice-campeã Paraíso do Tuiuti também ousou e combinou protesto com beleza. Balançou a avenida e emocionou com o tema escravidão, essa mácula na nossa História. A coreografia e expressividade da Comissão de Frente arrancaram lágrimas, de tão emocionante. O desfile mostrou que a História continua, que a escravidão, como sabemos, apenas mudou os métodos, mas ainda está aí. Hoje, os políticos escravizam toda a população e, claro, os mais pobres sempre são os mais penalizados. O destaque foi a caricatura do Presidente da República, representado como um vampirão — essa vai para os anais da Sapucaí com as bênçãos das “vítimas” do gópi.

A Mangueira fez um protesto mais caseiro, digamos assim. Contudo, a motivação para o enredo “Com Dinheiro Ou Sem Dinheiro, Eu Brinco” nos traz uma reflexão. Longe de mim defender o prefeito Crivella, mas o enredo da Estação Primeira se ancora na diminuição de recursos públicos para as escolas de samba. Em que pese o Estado tenha seu papel em financiar e incentivar a cultura, não cabe ao poder público fornecer tanto dinheiro a eventos e artistas consagrados. Oscar Wilde já dizia em sua obra “A alma do homem sob o socialismo”: “Às vezes questiona-se qual forma de governo convém mais a um artista. Há apenas uma resposta para essa pergunta. A forma de governo que mais lhe convém é nenhum governo. É ridícula a autoridade sobre o artista e sua arte”. Fica pergunta: se Crivella tivesse apoiado os desfiles na Sapucaí com bastante grana, a Mangueira teria esse tema em seu carnaval? Duvido. Aliás, a Mangueira nunca criticou o presidiário Sergio Cabral ou Eduardo Paes — o ex-prefeito, inclusive, comemorou sua reeleição no barracão da Portela.

Não podemos deixar, contudo, que esse brilho e encantamento escondam a real face das escolas de samba. Arte é arte, e os elogios foram feitos nos parágrafos anteriores. É que tudo tem seu outro lado, seus paradoxos.

O tema e o samba enredo da campeoníssima Beija-Flor foram ideia de um filho de bicheiro (condenado a 47 anos de prisão). O rebento, de apenas 20 aninhos, já dá as cartas na escola. Boa parte do patrocínio de todo o espetáculo terá vindo de onde? Sem nos esquecermos de que parece haver um enlace entre os políticos cariocas e o crime organizado do jogo do bicho, do tráfico de drogas etc. Vamos aguardar o andamento das investigações, não é de duvidar!

A vice-campeã, Paraíso do Tuiuti, no ano passado, atropelou 20 pessoas com um carro alegórico desgovernado: uma mulher morreu, várias pessoas ficaram gravemente feridas. Ao que parece, ficou tudo por isso mesmo. Nenhuma punição para a escola que essa semana se sagrou vice-campeã do carnaval carioca e caiu nas graças dos esquerdistas com os protestos contra o atual governo. Aliás, pelo que pude apurar, a escola nem sequer pagou indenização ou ofereceu um tratamento melhor para as vítimas. Mas tudo bem, né? A alegria da folia e a sonhada glória valem tudo. Será?

Enfim, nada é exatamente como parece ser. Nós que assistimos ao espetáculo somos apenas mais alguns no “estandarte do sanatório geral” desse país confuso e cheio de contradições. A música pode até ficar imortalizada, mas nós, que vivemos o aqui e agora, não podemos fechar os olhos para tudo isso e simplesmente cair no samba. É com isso que a maioria dos políticos e bandidos (por um triz as palavras não são sinônimas no Brasil) contam.

Fica aqui nosso protesto em forma de arte: Literatura!

Quem quiser, pode assistir ao vídeo do Roger Scruton:

http://www.andreassibarreto.org/2011/11/why-beauty-matterspor-que-beleza.html

Foto: Allan Duffes e Magaiver Fernandes