O DNA e o passado

O DNA e o passadoVivemos a época da simplificação: tudo tem uma explicação simples e fácil, muito provavelmente errada. Acreditamos piamente que as tecnologias disponíveis resolverão todos os problemas. Em Ciência, estamos vendo como as ferramentas envolvendo o DNA explicam muita coisa. E querem usá-las para esclarecer o passado. Será que apenas isso é suficiente?

Recentemente, veio a conhecimento público que uma das piores epidemias da História teve sua causa descoberta. Trata-se da doença que, segundo relatos antigos, dizimou os astecas. Os indígenas a chamavam cocoliztli, que queria dizer peste.

A doença afetou a população da então Nova Espanha, hoje o México, em duas epidemias, nos anos de 1545 e de 1576. Até essa semana, a suspeita era de que foi causada por um vírus que provocava febre hemorrágica. Os doentes tinham febre, alucinações e sangravam pelo nariz e pelas orelhas. Pelo menos esses sinais clínicos combinam com doenças causadas por vírus como o Ebola, por exemplo.

Contudo, cientistas do Instituto Max Planck da Alemanha, da Universidade de Harvard e do Instituto Nacional de Antropologia e História do México garantem que uma bactéria intestinal causou a doença. Uma velha conhecida nossa: a Salmonella enterica. O estudo detectou a existência do DNA do microrganismo na polpa dos dentes de 10 dos 29 restos mortais de astecas de um cemitério da época, em Oaxaca, México.

Fiquei intrigada: não sabia que S. enterica causava febres hemorrágicas e fui procurar saber sobre isso. No entanto, nada, absolutamente nada do que encontrei sobre salmonelas menciona hemorragias fora do trato intestinal. Aliás, anualmente, cerca de um bilhão de pessoas tem infecção intestinal causada por esse micróbio. Inclusive, em casos raros pode haver reação autoimune — testemunhei, há alguns anos, um caso da síndrome de Reiter na minha família, ocasionada por salmonela.

Pois a associação entre salmonela e cocoliztli me pareceu um pouco improvável, como de fato comentaram alguns cientistas no periódico Science. Talvez esses 10 astecas possam ter morrido infectados por S. enterica, mas daí a afirmar que essa bactéria seria a responsável pela cocoliztli, parece uma extrapolação não muito consistente. Isso porque essa bactéria e a doença por ela causada são muito conhecidas e, pelo que pude apurar rapidamente, não há registros de febres hemorrágicas ocasionadas por salmonela.

Como a maioria da população asteca morreu de cocoliztli, para os autores da pesquisa existe uma grande probabilidade de que o agente infeccioso causador da peste seja a salmonela, cujos restos de DNA foram encontrados em 1/3 dos esqueletos preservados, ainda que os sintomas descritos à época não combinem com a salmonelose. Todavia, não dispomos de elementos suficientes para essa correlação. Inclusive, sendo a cocoliztli contagiosa, por que não há relatos de número expressivo de espanhóis mortos com os sinais clínicos descritos?

Sequenciar o DNA é importantíssimo, mas não explica tudo. Por exemplo, 98% do genoma humano é igual ao genoma do chimpanzé. A complexidade envolvida nos 2% é o que nos diferencia do outro primata. O sequenciamento completo do DNA das duas espécies não explicou a diferença: são requeridos estudos muito mais aprofundados.

Outra situação interessante: duas múmias expostas no Museu de Manchester tiveram um mistério desvendado pelo sequenciamento de DNA, mas isso não explica a história toda. O sequenciamento do DNA dessas múmias, incluindo o DNA mitocondrial, revelou que são meios-irmãos, filhos da mesma mãe. A inscrição dos hieróglifos dizia que ambos eram filhos de um governante local. A primeira hipótese a se pensar é que a mãe pulou a cerca uma, quiçá duas vezes — como não temos a múmia do governante, não dá para saber se ele era pai biológico de uma das múmias; pode não ser de nenhum dos dois, afinal. Pode ser, talvez, que o governante tenha se casado com uma viúva que já tinha um filho e o criou como seu. Enfim, são diversas as possibilidades capazes de explicar a relação parental. Neste caso, os cientistas foram mais cautelosos e não extrapolaram o dado fornecido pelo sequenciamento, i.e., não simplificaram a História.

As novas tecnologias resolvem muitos problemas. Sequenciar os genomas, fazer testes de paternidade, e outras evidências que a tecnologia pode fornecer, podem ser pistas importantes, mas não a explicação para tudo. Um uso fundamental, por exemplo, são as técnicas de DNA forense para investigação criminal: evidências que combinadas com outras provas desvendam crimes.

Mas quem sou eu para questionar os cientistas do Max Planck, de Harvard e do Instituto de Antropologia do México? Ninguém.

Só sei que a Ciência é dinâmica e não uma verdade absoluta — o conhecimento de hoje pode ser refutado a qualquer momento. No futuro, outros pesquisadores encontrarão outras evidências que vão acalorar o debate sobre a cocoliztli. Para mim, este continua sendo um mistério da humanidade.