Ainda é cedo para comemorar

Desde que me entendo por gente, nunca vi nosso parlamento trabalhar tanto. Senado Federal e Câmara dos Deputados aprovaram durante esta semana importantes projetos de lei e propostas de emenda à Constituição. Um dos projetos mais importantes da pauta era o PLS 280, de 2016, de autoria do Senador Renan Calheiros, que criminaliza o abuso de autoridade.

Interessante como o autor da proposta e os senadores de modo geral se interessaram pela matéria, justamente no momento em que boa parte deles tem que se submeter às autoridades policiais e judiciais. O Senador petista Tião Viana, também enrolado com a Lava-Jato, chegou a afirmar que a lei de abuso de autoridade em vigor, de 1965, era para permitir o abuso de autoridade.

Contudo, se dermos uma olhada na Lei 4898, de 1965, vemos que ela possui vários pontos em comum com o PL aprovado pelo Senado. Não é exatamente permissiva em relação ao abuso de autoridade, mas dificulta a punição dos agentes públicos. Já o texto aprovado esta semana é prescritivo: tipifica cada tipo de abuso e determina a pena a ser aplicada.

Obviamente, por definição, qualquer cidadão é favorável a que se punam abusos cometidos por agentes públicos. Contudo, com esse nosso parlamento, temos que ficar espertos, porque sempre pode ter um dispositivo que prejudique o cidadão ou, neste caso, a atividade-fim de autoridades.

Um exemplo é a inclusão do chamado crime de hermenêutica: a possibilidade de divergências na interpretação das leis por juízes que configurarem o abuso de autoridade. Ora, interpretar leis ante o fato em julgamento e os argumentos apresentados pela defesa e pela acusação é o métier de qualquer juiz. E as interpretações podem ser variadas, o que possibilita diferentes pontos de vista e diversas conclusões de processos. Não por acaso, há várias instâncias recursais no Judiciário, justamente para permitir outras interpretações à luz de fatos, provas e interpretações da lei ante os argumentos da defesa e da acusação.

Foram meses de discussão até que o relator do PL 280/2016, Senador Roberto Requião, exarou seu parecer, apresentando um texto substitutivo que busca um “consenso” entre a proposta original de Renan Calheiros e a contraproposta apresentada pelo MPF. Já no primeiro artigo, ficou determinado que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade”. Ufa!

No total, o texto aprovado tipifica 30 crimes de abuso de autoridade, com suas respectivas penas. Entre os crimes, algemar pessoas que não ofereçam resistência, nem representem ameaça; decretar prisão coercitiva sem intimação prévia; pedir vista de processo para atrasar a conclusão de julgamento; e dar carteirada, entre outros.

Um ponto que me chamou atenção no PL e que consta na Lei 4898/1965 é o crime de “deixar de relaxar a prisão manifestamente ilegal”. Muito importante, porque é prisioneiro ilegal aquele que já terminou de cumprir a pena a que foi condenado e não foi solto. Será que com a penalidade de detenção de um a quatro anos para a autoridade judiciária responsável esses juízes vão trabalhar um pouco mais e resolver esses casos? Essa situação já é tida como abuso de autoridade, mas as penalidades atuais são bem brandas: uma multa; detenção de, no máximo, seis meses; e perda do cargo e inabilitação para o serviço público por três anos.

Também ficou mais abrangente a definição de autoridade, que engloba qualquer servidor público, militares e membros dos três poderes, do Ministério Público e dos tribunais ou conselhos de contas. Na lei de 1965, autoridade é definida como “quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração”. A nova futura lei dá nome aos bois, e isso me parece um avanço, principalmente no caso dos tribunais e conselhos de contas.

Agora, sejamos práticos: no papel, está tudo muito bom. No discurso, também, uma maravilha.  Na prática, se a lei atualmente em vigor, com vários dispositivos iguais, não era cumprida, será obedecida a nova futura lei? A grande diferença e a verdadeira motivação para este PL foi o dispositivo que considerava abuso de autoridade as divergências de interpretação. O restante do projeto de lei é, basicamente, um detalhamento, e a ampliação da lei de 1965. Portanto, a luz no fim do túnel ainda está distante.

Assim como a PEC que acaba com o foro privilegiado, o caminho do PLS 280 é longo até que vire lei. Desta forma, o único motivo de comemoração é que no Senado o debate gera algum resultado que faça sentido. Não nos esqueçamos de que o PL ainda deve ser apreciado na Câmara dos Deputados, que pode muito bem desvirtuá-lo — como ocorreu com as dez medidas contra a corrupção e com a lei de terceirização — ou até engavetá-lo. Ainda é (muito) cedo para comemorar ou ter alguma esperança.

Bom fim de semana procês!