Por que há quem defenda o indefensável
No domingo em que faleceu, o poeta e cronista Ferreira Gullar se perguntava “por que certas pessoas indiscutivelmente inteligentes insistem em manter atitudes políticas indefensáveis”. De fato, para mim e para muita gente é um mistério o que leva uma pessoa inteligente e com senso crítico, a apoiar certas figuras políticas, apesar de todas as evidências de crimes cometidos. Mas um artigo publicado no primeiro número deste ano do periódico Scientific American tenta explicar.
A matéria, intitulada How to convince someone when facts fail, apresenta uma variedade de exemplos, todos cientificamente estudados, que explicam o “fenômeno”. Uma situação básica: criacionistas, apesar de todos os registros fósseis e comprovações conhecidas da ciência, notadamente os avanços no conhecimento do DNA, não apenas permanecem acreditando na teoria criacionista, como também dão uma forçadinha para propagá-la. Isso se deve ao fato de que negar o criacionismo e admitir a evolução das espécies implica em ameaçar ou mesmo destruir sua visão de mundo ou seu autoconceito.
Nos últimos anos, observamos em nosso país uma tremenda polarização de ideias, o que levou criação das alcunhas “coxinha” e “mortadela” para definir os grupos respectivamente contrário e a favor à continuidade do governo Dilma Roussef. Os coxinhas não conseguem entender como há gente que defende um governo que, conforme se vê na imprensa, é comandado por esquemas corruptos e se o defendem é porque se beneficiam de tais esquemas de alguma forma. Já os mortadelas têm certeza absoluta de que os coxinhas são analfabetos políticos, massa de manobra da elite rica. São rótulos que partem do princípio de que ninguém pode pensar sozinho e chegar às suas próprias conclusões, ainda que estas sejam baseadas em “crenças” desmentidas pelos fatos.
O resultado é uma sociedade dividida que parece caminhar para a violência, conforme observamos nos últimos protestos em Brasília. Nas redes sociais, é possível visualizar, além da divergência de ideias, a incapacidade de muitos em manter um debate educado. Frequentemente, há posts que partem para a grosseria, lançando mão da violência léxica para expor seus pensamentos e criticar aqueles de quem divergem.
Certa vez, me disseram que “os fatos estão aí, só não os vê quem não quer”. Ora, os fatos são os mesmos, não mudam. O que há de diferente é a interpretação de quem os analisa. E tais interpretações são, obviamente, influenciadas pelas experiências, visões de mundo e autoconceitos. Definitivamente, não existe uma única interpretação para um mesmo fato. Portanto, acusar de analfabeto político aqueles que não pensam de acordo com a ideia imposta por determinado grupo, além de faltar com o respeito para com a pessoa, implica na negação de um debate. Ao se impedir a discussão sobre qualquer assunto, mas especialmente sobre política, identificamos um viés autoritário que privilegia a uniformidade de pensamento — quem leu o clássico 1984, de George Orwell, sabe do que estou falando.
Por outro lado, a distribuição de pão com mortadela e o pagamento de “militantes” já foram noticiados (fatos), e isso, aliado a atos violentos (mais fatos), enfraquecem a argumentação. Esta, por sua vez é falha, porque distorce as evidências criminosas (crença), e geralmente conclui que os pobrezinhos são perseguidos políticos e que a investigação beneficia o partido rival (mais crenças). Não existe defesa de ideias: tudo se resume a tirar o foco do debate, através do simples ataque aos investigadores e aos juízes e, claro, aos rivais políticos que, vamos combinar, devem estar apavorados com o avanço das investigações. Tudo indica que chegaremos neles!
Ante tais evidências, parece que estamos diante da situação do título do artigo How to convince someone when facts fail, em bom e livre português: “Como convencer alguém quando os fatos falham”. Os autores do artigo nos dão a receita para lidar com a situação: (1) evitar emoções (ainda que sejamos provocados pelas ofensas); (2) discutir, não atacar; (3) ouvir e tentar articular outra posição, bem exata; (4) mostrar respeito; (5) reconhecer que é possível alguém ter essa opinião divergente (temos que ter em conta que a interpretação dos fatos é influenciada por experiências de nosso interlocutor que desconhecemos); (6) tentar mostrar que a mudança nos fatos não significa, necessariamente, mudança na visão de mundo. Em outras palavras, buscar levar uma discussão baseada no debate de ideias, respeitando as pessoas e suas ideias. Ouvir (ou ler) pode nos levar a algum aprendizado, ou, até mesmo a reconhecer que alguns fatos, realmente, são falhos. Para que isso ocorra, é mister que tenhamos a mente aberta e sejamos capazes de analisar e, pelo menos, tentar compreender outros pontos de vista, ainda que discordemos. Requer humildade.
Na verdade, todos gostaríamos que 2017 começasse diferente. Todos queremos ver a corrupção banida do país. Todos queremos ver nosso Brasil crescendo, sem pobreza, sem desemprego. Isso deveria nos unir.