A menina

hiv1— E o nosso amigo, como está? Está melhorando? Tem alguma previsão de alta?

— Ele melhora de uma coisa, depois aparece outra, coitado. Agora, está com sarcoma.

— Sarcoma?

— É um tipo de câncer de pele.

—Sei muito bem o que é sarcoma, e sei também que ele só afeta imunodeprimidos! Então ele…

— É isso mesmo, ele está com a menina.

Foi nessa conversa que tive a confirmação definitiva do que eu suspeitava havia tempos sobre um conhecido que está hospitalizado há meses. Embora não fosse nenhuma surpresa, fiquei muito triste.

É um moço jovem, talentoso na profissão que escolheu (e ama), bonito, divertido, interessante. Ele não escolheu a menina, ele nem queria a menina. Foi apresentado a ela por seu próprio companheiro, a quem era devotamente fiel. E ela se fez presente, sorrateira, implacável.

A menina chegou e no início ele nem percebeu sua presença. Mas, por profissão, fazia exames periódicos, e foi num desses que soube dela. Seu mundo caiu, seu amor se transformou na maior das decepções. Mas já que não havia como se livrar da menina, resolveu se entregar. Primeiro de alma: tristeza, melancolia, depressão. Depois, de corpo.

“Menina” é uma gíria utilizada para se referir à síndrome da imunodeficiência adquirida. Acho que estou impressionada, mesmo sem estar surpresa, porque é a primeira pessoa que conheço que está com a menina.

O Brasil tem uma das menores incidências de AIDS no mundo: 0,3% de prevalência na população adulta (15 a 49 anos). Desde o início da epidemia em nosso país (1980), foram registrados mais de 650 mil casos. Já perdemos muita gente brilhante, conhecida (Henfil, Betinho, Cazuza, Renato Russo, Sandra Bréa, Lauro Corona) e não tão conhecida assim.

A transmissão se dá por meio de relações sexuais e transfusões sanguíneas, principalmente. A menina é democrática, não escolhe sexo, raça ou religião.

Uma das maiores conquistas do Brasil é o programa de AIDS do Ministério da Saúde, estabelecido em 1996, que garantiu a universalização do tratamento gratuito para os pacientes. Como os retrovirais eram caríssimos, o Brasil começou um processo de quebra de patentes de medicamentos anti-HIV em 2001, sob a liderança de José Serra. Isso barateou o custo dos remédios e melhorou a atuação do programa.

O sucesso é tão grande que a transmissão do vírus da mãe para o filho está praticamente erradicada. O programa foi exemplar ao considerar os profissionais do sexo como parceiros na prevenção da doença, distribuindo preservativos, oferecendo testes e informando sobre a doença. O programa também é responsável pelas campanhas de combate ao preconceito e de prevenção, que foram exemplos para o mundo todo, com distribuição gratuita de preservativos e seringas. Mas ultimamente essas campanhas andam esquecidas.

O Brasil foi o primeiro país no mundo a ter uma fábrica estatal de preservativos, produzidos a partir de látex de seringal nativo. O custo mais baixo permite a farta distribuição de preservativos no carnaval, por exemplo.

A menina é dura na queda, mas vamos tentando superá-la. Obter uma vacina tem sido o grande desafio da ciência mundial, já que o vírus HIV tem como características mais marcantes o rápido ciclo reprodutivo e a alta taxa de mutações.

Infelizmente, ainda não ganhamos muitas batalhas contra a menina. Mas já aprendemos suas principais estratégias de combate e vamos tentando descobrir como acabar com ela. Por enquanto, o jeito é prevenir, porque remediar até funciona, mas o impacto que a menina causa sobre o paciente e sua família é incalculável.

Com relação ao meu amigo, não há muito o que fazer, a não rezar para que ele não sofra muito, para que o coquetel faça efeito e ele tenha, pelo menos, qualidade de vida.

Bom fim de semana procês!