O ENEM e o machismo obscurantista

enemDiferentemente da Dilma, que acha que é a mandioca, eu acho que é o ENEM uma das maiores conquistas do Brasil. Em que pesem seus problemas (afinal, nada é perfeito), o modelo é bom, interessante e acaba sendo uma maneira de padronizar os exames para entrar no Ensino Superior Federal. Até as faculdades particulares e três universidades portuguesas (!) utilizam o resultado do ENEM para selecionar alunos ou dar bolsas de estudo. Ainda temos muito que caminhar, é verdade, mas parece que estamos no rumo certo para a democratização do acesso ao ensino superior de qualidade (espero que não haja desvios à frente).

O ENEM sempre tem uma polêmica. Houve anos seguidos com algum vazamento de provas ou gabaritos, por exemplo, mas este ano a polêmica foi diferente e, de certa forma, até interessante, pois nos permite refletir um pouco mais sobre nossa sociedade. E estou convencida de que vivemos num país de bárbaros.

A célebre frase de Simone de Beauvoir em uma das questões da prova gerou revolta em alguns setores. É natural que haja discordâncias, afinal, a unanimidade é burra, já dizia Nelson Rodrigues. O problema foi a repercussão e a doutrinação por trás das manifestações de alguns parlamentares brasileiros, que deveriam ser os primeiros a zelar pela total obediência à nossa Carta Magna, observando o princípio da laicidade do Estado.

São tantas as interpretações possíveis para “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, a começar pelo próprio processo de desenvolvimento biológico, o que valeria para homens também. Aliás, uma das indagações que mais se ouve por aí é “tu é um homem ou um moleque?” É, ninguém nasce homem.

O papel da mulher na sociedade, e especialmente na política, não é definido por sua biologia, psicologia ou condições econômicas, como bem afirmou a filósofa Simone de Beauvoir. É muito mais, e vai também muito além do aspecto sexual ou da chamada “ideologia de gênero”. Nossa visão sobre o mundo que nos cerca é um diferencial em relação aos homens, já que temos habilidades intrínsecas que recebemos de nosso duplo cromossomo X. E existe coisa melhor do que a diversidade de ideias e de pontos de vista?

Nesse mundo machista, ser provido de um falo é a senha para o poder. A ausência peniana, combinada a pensamentos e ponderações lógicas e com posicionamentos políticos e sociais firmes, atrapalham o “sistema” estabelecido… pelos homens, claro. A biologia masculina, muitas vezes, se sobressai às ideias e à essência do convívio social e familiar, e uma prova disso são os altos índices de violência contra a mulher.

Convenhamos, à primeira vista parece um absurdo existir delegacia especial para mulheres, e é estranho tipificar um crime como “feminicídio”. Mas torna-se necessário, pois no país de bárbaros em que vivemos, com sua justiça lenta e falha, estes dispositivos legais servem para chamar a atenção para o problema. Enquanto nossa sociedade não se desenvolver, temos que lançar mão de artifícios como esses.

Na crônica “Santas ou putas: quem nos julga?” faço um relato do quão difícil é ser mulher. E mais difícil ainda é fazer com que os homens compreendam as nossas dificuldades. Para eles é tão natural, eles nem percebem quantas frases e atitudes machistas conseguem expressar em um dia, e não são poucas. Isso acontece em todas, repito, todas as esferas e classes sociais. A diferença é só o grau de “sutileza”.

O machismo está arraigado em nossa sociedade, mas o mais temerário é que vem sendo exacerbado pelo obscurantismo. E é esse obscurantismo machista que reduz a questão do ENEM à “ideologia de gênero”, afastando a discussão de seu ponto crucial, que é o envolvimento das mulheres, em igualdade de condições com os homens, na construção de uma sociedade mais justa.

O ENEM 2015, portanto, foi marcante também para quem não fez as provas, pois explicitou o machismo obscurantista que nos ronda e parece pronto para nos engolir. Salve-se quem puder!

Bom feriado procês!

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1 Response

  1. 11/05/2016

    […] ENEM parece ser o caminho para a democratização do ensino superior de qualidade, como já afirmei. E, mais uma vez, desde a sua criação, está envolvido em polêmica. Agora, a mais triste de […]