Um gênio incompreendido?

Gilberto-Orivaldo-Chierice-Foto-Reprodução-EPTVHá alguns anos, li o livro A impostura científica em dez lições, de Michel de Pracontal. O autor faz um compêndio sobre a pseudociência e como ela se espalha na sociedade e ganha a confiança das pessoas. É um livro interessantíssimo.

Ao longo dos dez capítulos, Pracontal nos apresenta os cinco sentidos do impostor científico, e o mais importante deles é a imodéstia. O impostor científico não tem a menor dúvida de sua genialidade e de sua ilimitada capacidade de solucionar pelo menos um dos grandes problemas da humanidade.  Outra característica mostrada no livro é que o impostor sabe usar muito bem as palavras e ilude com facilidade as pessoas susceptíveis à questão que ele propõe e “soluciona”. Além da manipulação das palavras, os fatos também são manipulados pelo charlatão, que conta meias verdades e inverdades, lançando mão de uma lógica bem particular, para convencer seu público-alvo.

O farsante escolhe cuidadosamente seu nicho de atuação, pois ali estão pessoas susceptíveis às suas charlatanices. E com as palavras e fatos devidamente manipulados num nicho apropriado, finalmente o impostor alcança e usa a mídia.  Não deixa de zombar da ciência oficial (que, claro, refuta seus argumentos) e, por vezes, se coloca como vítima de um sistema contaminado e viciado: é, basicamente, um gênio incompreendido.

Lembrei-me desse livro devido à celeuma que se estabeleceu em torno da fosfoetanolamina, substância química que supostamente curaria mais de 40 tipos de câncer. Um grupo de pesquisa da USP de São Carlos obteve alguns resultados promissores em estudos com animais. E bastou isso para que um dos “pesquisadores” incorresse em todos os comportamentos que listei acima.

O nicho é a parte mais fácil. O câncer é uma doença difícil, mortal em muitos casos. Não apenas o doente, mas sua família e amigos estão susceptíveis a qualquer coisa, inclusive (e principalmente) a charlatanices. A partir daí, é só seduzir e utilizar a mídia, culpando o sistema e a ciência oficial pelo insucesso de sua empreitada.

Para facilitar ainda mais as coisas para o impostor, a população brasileira, de modo geral, é insuficientemente preparada em termos científicos, não tem a menor noção das etapas de desenvolvimento de um novo fármaco e desconfia peremptoriamente do sistema vigente. Nicho fertilíssimo.

Qualquer remédio no mundo precisa da aprovação do poder público para ser colocado no mercado. E, obviamente, não se trata de uma simples canetada. É preciso demonstrar cientificamente a eficácia e a segurança do produto. Há os ensaios pré-clínicos (geralmente testados em animais de laboratório de diversos portes) e os clínicos, com seres humanos, que devem ser feitos em três fases sucessivas. Para isso, há um conjunto de procedimentos que consideram, inclusive as complexas questões éticas envolvidas. Esse é o sistema que tem funcionado há muitos anos e é mais ou menos igual no mundo todo. E não temos por que desconfiar dele aqui no Brasil: frequentemente, a ANVISA desautoriza a venda de alguns medicamentos, porque detecta problemas em seus monitoramentos periódicos.

No caso específico da fosfoetanolamina, que supostamente curaria o câncer, tenho dificuldade em acreditar nessa história que a mídia (manipulada) anda espalhando. Ora, conhecendo o interesse comercial da indústria farmacêutica, por que nenhuma empresa, incluindo as gigantes multinacionais, se interessou pelo composto químico? Sua patente já poderia ter sido adquirida (os pesquisadores sairiam com um pé-de-meia pro resto da vida), os testes necessários para colocá-lo no mercado teriam sido feitos (seguindo as exigências regulamentares à risca) e o novo proprietário do composto ganharia rios de dinheiro. Com toda essa “propaganda”, como isso ainda não aconteceu?

Mas a cereja do bolo é o fato de alguns servidores da USP São Carlos estarem produzindo e distribuindo cápsulas do composto. Algo completamente ilegal, já que a produção em larga escala de qualquer medicamento exige condições de controle extremas e, claro, autorização do órgão competente. Ademais, o material distribuído não possui bula e tampouco é prescrito por médicos, apesar de o charlatão pesquisador dizer-se como tal. Bom, a USP é uma ICT (instituição científica e tecnológica), não uma indústria. Isso só faz apimentar esse estranho “debate”, principalmente depois que a justiça começou a distribuir liminares para fornecimento do químico a pacientes.

É triste constatar que pseudopesquisadores estão abusando do difícil momento de muitas famílias, e que o nome da melhor universidade brasileira está sendo usado num caso típico de impostura científica com forte repercussão. Por isso, a USP informou em um comunicado que está estudando “denunciar ao Ministério Público os profissionais que estão se beneficiando do desespero e da fragilidade das famílias e dos pacientes”. Espero, sinceramente, que a universidade tome esta e outras providências. E rápido.

Um bom fim de semana procês.

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