Uma experiência mística

Cheguei!!!

Cheguei!!!

A decisão e os preparativos

Comecei 2014 com uma dúvida: o que fazer para comemorar meus 40 anos de vida em outubro? Primeira opção: uma festa. Mas pensei em todo o trabalho para organizá-la e que nenhum de meus familiares e parentes mora em Brasília minha festa seria um fiasco sem a presença deles, pelo menos para mim. Então, meu marido sugeriu que viajássemos para Fernando de Noronha. Ok, nunca estive por aquelas bandas e quero mesmo conhecer nosso paraíso tropical, mas poderíamos passar quaisquer de nossas férias lá e, portanto, não seria uma viagem especial. E foi pensando em uma viagem especial que decidi fazer o Caminho de Santiago de Compostela.

Sou cristã e católica. Vivi 40 anos muito plenos, felizes, com saúde e uma família maravilhosa. Ao longo desse período, conquistei amizades valiosas e um ótimo emprego. Conheci lugares incríveis. Estudei bastante e alcancei praticamente todos os objetivos aos que me propus. Enfim, tanta coisa boa que eu deveria agradecer por tudo. Nada como fazer um sacrifício agradável a Deus: caminhar 160 km, chegar a Santiago no dia de meu aniversário e comemorar numa terra que considero santa, pois é onde estão os restos mortais do apóstolo de Jesus, Tiago Maior. No percurso, rezar, refletir.

Decidida a comemoração, o segundo passo foi pesquisar como torná-la realidade. Tudo bem que a ideia incluía um sacrifício, mas como era meu aniversário, queria fazê-lo com tranquilidade. Por isso, contratei uma agência espanhola especializada no Caminho de Santiago: eu teria minhas estadias reservadas e garantidas, com meia-pensão (jantar e café da manhã) e eles levariam minha bagagem de um ponto a outro do Caminho. Eu levaria apenas o essencial dentro da mochila e poderia me dedicar plenamente à meditação sem maiores preocupações.

Uma parte importante dos preparativos foi reunir os documentos necessários para entrar na Espanha. Fiquei um pouco tensa com isso, já que há pouco tempo estavam impedindo brasileiros de entrar naquele país, especialmente uma mulher sozinha. Juntei tudo quanto foi documento que me ajudasse a comprovar que (i) tenho emprego fixo; (ii) não sou uma aventureira; (iii) tinha dinheiro suficiente para me sustentar durante minha estada e; (iv) ia voltar (e-tickets da volta e os vouchers de estadia em Madrid e ao longo do Caminho, com os recibos de pagamento).

Minha preparação prévia para a caminhada foi feita com treino funcional, spinning, dança e tae fight (luta com ginástica). Eu necessitava ganhar condicionamento físico e emagrecer para encarar bem a empreitada. Também participei de palestra e de uma exposição de fotos sobre o Caminho de Santiago no Instituto Cervantes. Não quis ler sobre as experiências de outras pessoas; quis viver minha própria experiência, sem influências externas. Apenas pesquisei sobre os pontos turísticos dos lugares onde me hospedaria, caso houvesse tempo para conhecê-los.

Embarquei dia 14 de outubro, 10 dias antes de meu aniversário e da data prevista para chegar à Catedral.

Madrid

Quero falar de Madrid, porque esta foi também minha primeira viagem à Europa.
Estava tensa com a chegada ao aeroporto de Barajas, por todas as razões acima. Meu marido, professor, não pôde ir comigo, sabem como é, período letivo.

Cheguei à imigração com uma pasta repleta de documentos na mochila. Como sou contra, por princípio, dar informações que não me sejam solicitadas, minha estratégia foi deixar a pasta na mochila, apresentar apenas meu passaporte e à medida que o agente me pedisse os documentos, eu os iria apresentando. Seguiu-se, então, o diálogo:
— Buenas tardes, señor – já entregando o passaporte.
— Buenas tardes. ¿Adónde vás?
— Voy a pasar un día y medio en Madrid y después seguiré en autobús para Pedrafita do Cebreiro, en Galicia, donde empezaré el Camino de Santiago.
O agente me olhou e sorriu. Sorri também e disse:
— ¡Estoy muy feliz! – porque eu estava mesmo e depois do sorriso dele, eu relaxei.
Ganhei outro sorriso, o carimbo no passaporte e ouvi a primeira vez de muitas:
— ¡Buen Camino!
Saí radiante, levíssima e surpresa com a facilidade com que entrei na Espanha. Chegar falando espanhol talvez tenha ajudado.

Em Madrid, comprei um chip por apenas 10 euros, o que me garantiu 1GB de internet para os 11 dias que eu ficaria em território espanhol. Depois desta providência básica, pernas pra que te quero? Comprei um cartão do metrô e visitei alguns pontos turísticos básicos de Madrid: a Puerta de Alcalá e a Fuente e o Palacio de Cibeles, onde comecei minhas compras de souvenires – boa parte dos euros que levei foi gasta em lembranças.

À noite, fui a um show de Flamenco, com jantar incluído, em uma casa indicada pelo Trip Advisor. Foi o programa mais caro que fiz, mas essa parte da cultura espanhola sempre me atraiu e eu não poderia passar por Madrid sem desfrutar dessa linda arte!

No segundo dia, visitei a Catedral de Almudena e o Palácio Real pela manhã, quando tive a companhia de um chinês! Eu estava esperando para atravessar a rua e ele veio completamente perdido e eu o ajudei. Ele achou que eu era espanhola, mas quando eu disse que era brasileira, ele fez um monte de perguntas sobre nosso país, não sabia nada.

Perguntei a ele seu nome, esperando um Won Wang Lee ou qualquer coisa do tipo e ele me respondeu que tinha um nome fácil em inglês, Henry – que decepção! Henry era funcionário de uma multinacional europeia na China e estava em Madrid a trabalho. Durante a visita à Catedral, Henry achou que estávamos no Palácio Real e eu lhe expliquei que estávamos em uma igreja. Ele consultou seu celular e viu que a Catedral estava no top 3 de lugares para conhecer em Madrid. E começou a me fazer perguntas sobre as histórias dos santos que tinham altares na Catedral. E eu não sabia de quase nenhum. Expliquei para ele que a Igreja tem muitos santos, é impossível saber tudo.

Da Catedral, rumamos para o Palácio, que fica em frente. Aluguei um audioguia em espanhol e ele pediu um em chinês, mas não tinham. Então, eu ouvia as histórias dos salões do palácio e contava para ele. Ele retribuiu, ensinando-me sobre os vasos chineses que havia no Palácio. Ao final da visita, me convidou para almoçar, mas eu não pude aceitar, porque ainda teria que visitar o Museu do Prado.

O Museu do Prado é imenso e se eu tivesse passado um dia inteirinho lá, ainda não teria conseguido percorrê-lo todo. Recebi um folheto com um mapa do museu e algumas instruções e minha primeira providência foi traçar uma estratégia de visita, por prioridade: 1. queria ver tudo de Goya; 2. queria ver o máximo possível de Velázquez, especialmente o quadro “As meninas”; 3. o que desse das obras maestras indicadas no folheto; 4. comprinhas na lojinha de souvenires.

Consegui ver tudo de Goya e de Velázquez e muitas obras de Greco, Murillo, Ribera, Rubens e Rembrandt, 21 das 50 obras maestras indicadas, além de esculturas de antiguidade grega, uma beleza. E ainda consegui comprar lembrancinhas!

Saí feliz do museu, na hora de fechar (empurrada pelos seguranças) e com a sensação de ter aproveitado o tempo em Madrid da melhor maneira possível! Daí metrô, hotel, banho e rodoviária, rumo à Galicia!

Veja aqui fotos de meus passeios por Madrid.

Antes do Caminho

Cheguei em Pedrafita do Cebreiro às 6h da manhã de uma sexta-feira, debaixo de uma chuvinha fina e abundante e em meio ao breu total. Não tinha ideia de que direção tomar para chegar ao hostel onde tinha reserva. Dez euros abençoados!

Liguei para o hostel, falei com a proprietária e descobri que estava a poucos passos de lá. Fui recebida por um casal de senhores muito fofos, que já tinham meu quarto lindinho preparado, tudo muito limpo, com banheiro e chuveiro quente. Recebi um pacote que a agência de turismo mandou, com todas as instruções para fazer o Caminho, incluindo um miniguia turístico dos lugares por onde passaria.

Dormi até 10:30h, tomei um desjejum bem simples e fui explorar os arredores, já que tinha que comprar capa de chuva, chapéu e um cajado. Também queria fazer um treino de caminhada, já que estava há alguns dias sem nenhum treino físico pra valer.

Encontrei tudo o que precisava numa lojinha do outro lado da rodovia que, por sinal, era também a avenida principal de Pedrafita. Comprei um chapéu impermeável, que ajudaria a proteger meus óculos da chuva.

De lá, caminhei 4 km até O Cebreiro. Subida grande e íngreme, numa trilha no meio de uma matinha. Como havia chovido muito à noite, estava muito molhada e num ponto mais plano do caminho, coloquei minhas botas impermeáveis à prova – passaram com louvor no primeiro desafio! Já nessa caminhada, entendi a serventia do cajado: ajudava muito nas subidas e descidas. Era um bom apoio, um verdadeiro companheiro!

Chegando ao Cebreiro, fui direto à Igreja de Santa Maria a Real. Não contive a emoção de estar pela primeira vez num lugar santo, onde ocorreu um milagre reconhecido pelo Vaticano. Conta-se que, em princípios do século XIV, numa noite fria e de muita neve, um camponês enfrentou uma tempestade para ir à missa. O padre que celebrava a missa desprezou a fé e o sacrifício do camponês, alegando que ele havia ido somente para comer (naquela época, não havia hóstia; pão e vinho eram consagrados e servidos na comunhão). Pois durante a consagração, o pão se transformou em carne e o vinho em sangue. O milagre se espalhou entre os peregrinos e o lugar tornou-se de grande devoção. Os reis católicos, Fernando e Isabel, quando peregrinaram até Santiago de Compostela, presentearam a igreja com um belo relicário, onde as relíquias do santo milagre estão expostas até hoje.

A igreja é uma construção muito antiga, pré-românica (século IX), mas muito bem preservada. Em uma das naves, estão os túmulos do padre e do camponês, testemunhas do milagre eucarístico. Depois de minhas orações emocionadas, acendi algumas velas, ritual que fiz em todas as igrejas do Caminho pelas quais passei, e peguei o primeiro carimbo em meu cartão, necessário para conquistar a Compostela.

O Cebreiro é uma vilazinha pequenina e lindinha, muito rústica. Creio que ainda exista somente devido ao Caminho. Visitei as palhoças, construções pré-românicas, adaptadas à vida nas condições de frio extremo do inverno da região. Nessas construções, as famílias e os animais conviviam e se aqueciam mutuamente. Algumas das palhoças expõem peças da vida àquela época, mas estavam fechadas para a siesta.

Decidi que em cada cidadezinha que eu parasse, compraria um cartão postal, para guardar de lembrança. Como estava ventando muito e ameaçando chover, resolvi pegar um táxi e voltar para Pedrafita.

Os jantares incluídos no pacote eram muito bons! Eu tinha direito a primeiro prato (sempre que possível, escolhia salada), prato principal, sobremesa, tudo isso acompanhado de uma cesta de pão e uma garrafa de vinho! Tomei o cuidado de beber apenas meia garrafa: queria começar a caminhar cedo no dia seguinte.

Veja aqui fotos d’ O Cebreiro

Os brasileiros e o cão (O Cebreiro – Triacastela – 21,69 km)

Às 8h da manhã de sábado, eu já estava pronta para caminhar, mas o dia ainda estava muito escuro. Decidi que nos dias seguintes sairia depois que amanhecesse para aproveitar melhor o caminho.

Cheguei n’O Cebreiro ainda estava clareando. Antes de iniciar, dei umas voltas pela vizinhança, queria fixar aquela paisagem única em minha memória. A igreja estava fechada, não deu para fazer uma oração como eu queria, mas rezei ali mesmo, no meio da vila. Procurei a seta amarela (que indicava o caminho) e fui!

Nem bem dei 20 passos já topei com um senhor de Londres. Disse a ele que era do Brasil e ele me contou que havia muitos brasileiros fazendo o caminho. Parecia padre, pelo jeito, pela disposição e pelo adereço que observei em sua mochila: tinha uma espécie de cachecol com o símbolo dos salesianos. Não conversei muito com ele, porque ambos estávamos interessados em apreciar o silêncio. Ouvíamos apenas a chuva e nossos passos.

Parei um pouco no alto de San Roque, onde há um monumento ao peregrino e tirei algumas fotos. Numa vilazinha chamada Hospital de la Condesa, entrei na igrejinha bem antiga, estava meio abandonada. Na saída, quase fui atacada por um pastor alemão, que latia ferozmente para mim. Parei com o cajado baixo e ele parou de latir e de me ameaçar e eu pude continuar seguindo as setas amarelas. Só depois, conversando com outros peregrinos que passaram pelo mesmo aperto, é que me dei conta do paralelo deste incidente com uma passagem do livro “O diário de um mago”, do Paulo Coelho.

O caminho era lindíssimo! Peguei uma parte pequena de rodovia e o restante foi de trilhas lindas, passando por sítios bucólicos, com paisagens, para mim, muito diferentes de tudo o que eu conhecia. Fiquei maravilhada com o outono espanhol. Parou de chover por volta de meio dia, o sol saiu e eu senti calor. Belas cores e luzes, um clima agradabilíssimo.

Conheci um grupo de brasileiros, um casal de São Paulo, um moço de Cuiabá e um pessoal de Porto Alegre. Caminhei boa parte do tempo com eles e até “almocei” um mini sanduíche de queijo e uma taça de vinho e tudo saiu por apenas 3,00 euros por pessoa!

Chegamos em Triacastela devia ser umas 15:30h. Separei-me do grupo e fui para a Igreja de Santiago, românica e cercada por um cemitério. Fiz orações e fotos.

A bela casa rural onde me hospedei data do século XVII e ainda conserva sua estrutura externa. Internamente está reformada e fiquei alojada num apartamento amplo, bem aconchegante, com banheiro e chuveiro quente. Pedi à moça que cuidava de lá uma bacia e pude fazer um escalda-pés relaxante.

Depois de um merecido banho, contabilizei as bolhas dos pés: duas, comecei bem. Também calculei a velocidade aproximada que levei para chegar a Triacastela: cerca de 4,0 km/h que, segundo o livreto da agência, é indicativo de bom condicionamento físico. Considerando que parei muito para tirar fotos e ainda tive a parada para comida com os brasileiros, acho que estava até melhor condicionada!

Depois de fotografar a casa e seus arredores, um lugar muito, muito lindo, fui à missa (de chinelos, por óbvias razões). O padre era pura simpatia, a missa foi simples e muito bonita. Ele tinha a bênção de Santiago em espanhol, inglês, francês e alemão. Peregrinos falantes dessas línguas leram a oração e o padre deu a bênção em espanhol.

Depois da missa, procurei uma lojinha de souvenires, mas não encontrei; sequer vi algum lugar aberto que vendesse cartões postais. Triacastela é uma vila com apenas 800 habitantes e o comércio é basicamente composto por restaurantes, cafés e albergues.

Desisti de minha busca e fui jantar. Comi um dos pratos típicos da região: a sopa galega. Deliciosa, mas uma combinação explosiva, digamos assim, já que é feita de batata, couve e repolho.

Quando voltei para a casa rural, ainda não havia escurecido. A internet pegava somente no pátio de baixo da casa e aproveitei para fazer algumas comunicações com a família. Fui dormir cedo, feliz.

Veja aqui fotos do meu primeiro dia de caminhada

Um rio, um mosteiro e las cantantes (Triacastela – Sarria – 24,5 km)

Após um café da manhã caprichadíssimo, me deixaram no “cerne” de Triacastela e voltei a seguir as setas amarelas. Neste dia, eu poderia escolher entre dois trajetos: margeando o Rio Sarria, passando por Samos, ou por San Xil, rota que tinha três quilômetros a menos. Escolhi passar por Samos, onde há um mosteiro beneditino do século VI – eu não poderia perder isso!

Tive por companhia, a maior parte do tempo, o próprio Rio Sarria. Passei por recantos belíssimos, desfrutei de ar fresco, de sol ameno e de meditações e orações, já que não havia ninguém para conversar comigo; a maioria das pessoas prefere andar menos.

Passei por uma vilazinha minúscula, chamada Lastres. O curioso nesta localidade é que em todas as casas havia uma placa com um desenho bem explícito, proibindo as pessoas de… de fazer na rua o “número dois”. Inesperado! E muito engraçado!
Próximo à entrada de Samos há um mirante do mosteiro, uma construção majestosa! Entrei na cidade atravessando uma ponte sobre o rio, (que tinha patinhos nadando, parecia aquelas paisagens de calendários antigos) devia ser umas 11:40h da manhã. Fui em direção ao mosteiro, queria visitá-lo! Mas estava fechado para visitas, a missa ia começar. Então, fui à missa, era domingo!

O mosteiro e sua igreja foram saqueados e incendiados algumas vezes ao longo de seus quase quinze séculos de existência e passaram por inúmeras reformas. No caso da Igreja, que fora reconstruída no século XVIII, o altar continha adornos feitos com o ouro levado da América. A grandiosidade e suntuosidade do ambiente contrastavam com a simplicidade da missa e dos monges. A missa em si foi muito simples, mas para mim foi um luxo desfrutar do canto gregoriano ao longo da celebração e as orações do Pai Nosso e do Santo cantadas em latim foram os pontos altos. Terminada a missa, ninguém soube me dizer a que horas o mosteiro reabriria para visitas e resolvi continuar a caminhar, ainda restavam quase 14 km.

Continuei margeando o rio. Os sons que eu ouvia eram dos meus passos e, vez ou outra, de pequeninas quedas d’água. Mas isso não durou para sempre. Duas garotas espanholas que deviam ter em torno de uns 20 anos se aproximavam de mim ouvindo música alta pelo celular. Adeus, sossego! Parei numa igrejinha que tinha um cemitério e as deixei irem à frente. Dei um tempo ali para que o celular ganhasse distância. Segui e em um momento percebi que elas me esperavam, me avistavam e seguiam adiante. Desligaram o celular ou a bateria acabou, sei lá, e então começaram a cantar elas mesmas, o que me motivou a apelidá-las de las cantantes.

Não tive como me afastar delas, elas sempre me esperavam, como se quisessem confirmar que estava tudo bem comigo, pois eu ia sozinha. Fofas, não? Dirigi uns segundos de minhas orações a estas desconhecidas que tendo apenas trocado duas palavras comigo (buen camino), zelavam por mim. Essa é uma das coisas que definem o Caminho de Santiago de Compostela.

Como esse era um caminho pouco escolhido pelos peregrinos, não havia comida o longo do trajeto. Encontrei um bar já bem perto de Sarria, mas o atendimento era tão ruim, que só comprei um chocolate. Las cantantes compraram cerveja e desapareceram. Não as vi mais naquele dia.

Já nos arredores de Sarria, percebi uns passos querendo me alcançar. Meu impulso foi apertar os meus passos e os de atrás também apertavam. Cheguei à conclusão que não adiantava fugir. Àquela altura, o caminho de San Xil já havia se encontrado com o de Samos e eu já havia começado a ver muitos peregrinos. E eis que se aproximou de mim um homem muito, muito magro, bem vermelhão de sol, cheirando a cerveja e cigarro. Conversamos um pouco. Era irlandês e vinha desde San Jean de Pied de Port: já havia caminhado 700 km!

Observamos uns insetos, já na entrada de Sarria, principalmente formigas e uma abelha parecendo uma mangaba, grandona. Pude mostrar-lhe a aranha que fazia as teias que nos importunavam naqueles dois ou três quilômetros finais. Ele me perguntou onde eu me hospedaria e eu expliquei que já tinha reserva num hotel – Sarria é uma cidade grande, bem moderna. Ele se despediu de mim e entrou no primeiro albergue que passamos. Devia ser quase 17h.

O google maps me ajudou a chegar ao hotel, mas eu poderia chegar seguindo as setas amarelas, pois ficava perto da cidade velha. Depois de meu merecido banho, fui à igreja pegar meu carimbo no passaporte do peregrino, comprovação de que completei o trecho, e aproveitei para passear um pouco. Vi o convento La Magdalena, que abria à visitação, entre 10h e 17h, um horário meio apertado para peregrinos… Tirei foto da Igreja de San Salvador e da torre do antigo castelo medieval. As construções da Calle Mayor estão até bem preservadas, mas muito já foi perdido, infelizmente.

Voltei ao hotel e jantei como una reina, mais este foi o único lugar que não me ofereceu uma garrafa de vinho, apenas uma taça.

Veja aqui as fotos do meu segundo dia no Caminho de Santiago

Uma cidade submersa e a anciã (Sarria – Portomarín – 22,75 km)

Antes de começar a seguir as setas amarelas, parei em uma loja e comprei um cartão postal e uma pochete. Detesto pochetes, mas fui vencida pela praticidade de ter minhas anotações, câmera e celular à mão, podendo então guardar o agasalho na mochila assim que começasse a sentir calor. É que como o casaco tinha bolso, eu o estava amarrando na cintura para não ter que abrir a mochila toda hora.

Segui as setas amarelas, passando pelo convento e peguei uma rua que levava à saída da cidade. Havia muitos peregrinos, mas me chamou a atenção a quantidade de idosos, andando bem devagar. Foi então que pensei que quando tiver tempo disponível tenho que fazer o caminho completo, em todos os seus 800 km. Não tem desculpa.

Na saída de Sarria, uma ponte medieval majestosa, muito bem preservada, chamada Ponte Áspera, um dos monumentos da cidade. Está sobre o Rio Pequeño, um afluente do Rio Sarria e, obviamente, só é atravessada a pé.

Passei, novamente, por muitos recantos e prados bem bonitos, mas a paisagem já estava se repetindo, e comecei a parar menos para fotos. Ainda assim, o caminho era lindo.

O silêncio era cortado pelos meus passos e pela algazarra dos corvos. Até que fui alcançada por um grupo grande de uns 30 ou 40 rapazotes, de não mais que 15 anos, com celular tocando música alta e muita risada. Pareciam alunos desses colégios tradicionais só para garotos. Ai, minha reflexão! Isso me motivou a apelidá-los de “Os vermes”. Queria de todo jeito fugir dos vermes! Mas, convenhamos, uma quarentona não tem o mesmo fôlego dos jovens de quinze anos. O jeito foi abstrair até chegar num lugar onde pudesse parar, sentar e esperá-los ir embora.

Na parada, um café, conheci outro grupo de brasileiros, que tinha uma moça paulistana e uma família (um pai com dois filhos) do interior de São Paulo. Acho que eles também pararam ali para esperar os vermes irem embora. Segui caminho com eles e conversamos muito sobre esse nosso Brasil, esse (des)governo e sobre as eleições que se aproximavam. Foi uma conversa agradável e proveitosa.

Chegamos cedo em Portomarín, umas 15h. Atravessamos uma imensa ponte sobre o Embalse de Belesar. Trata-se de um ponto em que o Rio Minho foi represado na década de 1960. A cidade velha de Portomarín está submersa e é possível ver as ruínas. Os monumentos, em especial a Igreja Fortaleza de São João e São Nicolas, foram levados e reconstruídos pedra a pedra na nova cidade. Depois da ponte, uma escada grande íngreme nos leva à porta da cidade. No topo da escada, um mirante muito lindo do Rio Minho.

Demorei a achar a pousada onde me hospedei: duvidei do google maps e fiquei dando voltas numa cidadezinha minúscula. Chegando, fiz meu escalda-pés, tomei um banho relaxante, cuidei das bolhas, calcei meus chinelinhos e fui passear antes da missa. A ruazinha principal é cheia de lojinhas, farmácias e pude comprar umas lembrancinhas e meu postal. Admirei mais o Rio Minho e tirei fotos com o monumento ao peregrino.

Entrei cedo na Igreja Fortaleza para a missa, queria rezar um pouco e contemplar. Fazia frio lá dentro. A igreja estava vazia, devia ter umas dez pessoas esperando a missa. Uma senhorinha local que chegou com sua acompanhante se aproximou de mim, me abraçou, me beijou no rosto e sussurrou ao meu ouvido que gostava de ir à missa todos os dias, mas nem sempre era possível. Fiquei emocionada e muito tocada com este gesto, afinal ela nunca havia me visto, sabia que eu era peregrina e que no dia seguinte não mais estaria ali. O Caminho é acolhedor.

Ainda tocada pelo gesto da senhora, comecei a ouvir vozes vindas da rua, volumosas, que se aproximavam da igreja: eram os vermes! Eles começaram a entrar e não acabavam, definitivamente, eles eram muitos! Deviam ser uns duzentos ou quase isso; os que eu havia visto no caminho era uma pequena parte. Ocuparam todos os bancos da igreja, e alguns ainda ficaram em pé. Peregrinos que esperavam do lado de fora da igreja ficaram sem lugar.

Mas nos primeiros dois minutos de missa, me arrependi de tê-los apelidado de “vermes”. Eram jovens exemplares. Alguns foram ajudantes do padre no altar, outros fizeram leituras durante a celebração e o restante se comportou muito adequadamente. Concentração total no momento da homilia, a atenção estava toda voltada às palavras do padre. Nunca havia visto tantos jovens assim. Fiquei muito bem impressionada, pedi perdão a Deus e rezei por eles, para que continuassem firmes na fé. Foi uma missa muito bonita e seguramente não o seria sem eles.

Quando me despedi da velhinha, ela quis saber de onde eu vinha e porque fazia o caminho. Conversei um pouquinho com ela, dei-lhe um abraço e fui pra fila do carimbo.

Jantei feliz e fui dormir com uma sensação enorme de paz!

Fotos do terceiro dia de caminhada aqui

O perfume santo e o remédio para bolhas (Portomarín – Palas de Rei – 25 km)

Saí de Portomarín umas 8:30h, sob forte cerração. Quando peguei a trilha, uns cinco minutos depois de ter saído da pousada, meu cabelo estava encharcado. Quis fazer uma foto, mas a lente de minha câmera focava nas minúsculas gotículas do ambiente. Não consegui mostrar nada!

De longe, ouvi a saída ruidosa dos jovens caminhantes, meus ex-vermes. Logo, logo eles me alcançariam.

Caminhei uma parte do trajeto com o grupo paulista. Foi muito legal, conversamos sobre literatura, música, até cantamos! Fiz mais que companheiros de caminhada, fiz bons e inesquecíveis amigos!

Chegamos a Palas de Rei por volta de 16h. A pousada reservada ficava nos arredores da cidade, era bem bonitinho, com chalezinhos, mas com um atendimento bem ruim, comida fraquinha, comparando-se aos demais lugares. A internet mal pegava no celular, no netbook, impossível.

Nesse dia, meus pés deram pala, estavam com bolhas em lugares muito sensíveis e, para piorar, não pude fazer o escalda-pés, porque não me forneceram uma bacia.
Fui cedo para a missa, achando que era às 18:30h, mas era às 20h. Então, aproveitei para pegar meu carimbo na Igreja São Tirso. Enquanto esperava a minha vez, um padre missionário estava abençoando um casal argentino com um óleo que tinha o perfume de Betânia, aquele mesmo que Maria, irmã de Marta, lavou os pés de Jesus, quando de sua passagem por aquelas bandas. O padre se despediu deles, dizendo que eram especiais e que ele não dava aquela bênção para todos. Quando chegou a minha vez, perguntou de onde eu era. Respondi e ele me perguntou se eu falava espanhol, disse que sim e então ele me perguntou se eu havia entendido tudo o que ele falou para o casal. Respondi afirmativamente, porque tinha entendido mesmo. O padre, então, me deu a mesma bênção, meio sem graça, sabe, não senti muita firmeza, mas fiquei feliz de ter em minha testa aquele perfume agradável a Deus, como ele próprio havia dito. Ele me explicou sobre o terço missionário e eu comprei um. Saí de lá leve, mas ainda andando devagar, com os pés bem doloridos.

Passei numa lojinha e comprei um postal. Na ruazinha do bochicho, encontrei alguns brasileiros esperando a hora da missa. Entre eles, uma moça muito linda que me ensinou a cuidar de minhas bolhas e ainda me deu o material! O Caminho é solidário! Assistimos juntos à missa e pela primeira vez vi coreanos participando da celebração, que, como de costume, estava vazia.

Meus amigos estavam hospedados em albergues da cidade e eu fui sozinha para a pousada. Fazia frio, a rua estava deserta e apesar de estar afastada do movimento, me senti muito segura. O silêncio era cortado somente pelo vento, estava esfriando.

Depois do jantar, cuidei das bolhas e adormeci ouvindo o vento.

Veja as fotos do meu quarto dia no Caminho de Santiago

O francês e o valenciano (Palas de Rei – Arzúa – 29,5 km)

Demorei um pouco para sair, tamanha a quantidade de curativos que tive que fazer nos pés antes de calçar as botas. Já prevendo isso, levei muito band aid e esparadrapo. Graças à companheira da noite anterior, consegui sair com algum conforto nos pés, essencial para o dia com mais quilometragem a cumprir.

Logo na saída de Palas de Rei, me encontrei com um casal de senhores. Ele, bem mais velho do que ela, andava bem devagarzinho. Não sei dizer se ela era filha, esposa ou acompanhante. Mas o fato é que ambos eram canadenses e a moça queria muito conversar. Perguntou de onde eu era, eu disse que era brasileira e a danada começou a falar em português, acreditem! Disse que em Toronto, onde morava, havia muitos brasileiros e ela quis aprender a nossa língua. Conversamos sobre a diversidade de sotaques do Brasil, foi muito interessante para ela. Por fim, vendo que minha marcha era a deles, ou seja, lentíssima, perguntei-lhes até onde iriam – eles andariam 11 km naquele dia e então eu lhes disse que iria até Arzúa e que precisava ir logo, porque tinha quase 30 km pela frente. Meu dia começou bem, falando português com uma canadense, em terras castelhanas: viva a globalização!

Caminhei um tempo no acostamento de uma estrada asfaltada e depois peguei uma trilha. Cheguei em Leboreiro, onde queria conhecer uma Igreja que, claro, estava fechada, mas deu pra fazer umas fotos. Tive até a ajuda de duas simpáticas espanholas para isso. Conversamos um pouco, contei-lhes que estava fazendo o caminho em ação de graças. Foi interessante que elas me disseram que já haviam me visto nas missas. Eu, muito concentrada em meu interior e algumas vezes cercada pelos meus compatriotas, sequer havia percebido a presença delas até aquele momento. Este foi o primeiro contato com essas moças que se tornaram especiais para mim. Fiz uma foto das duas em frente à igreja e prossegui. Ainda devia ter uns 25 km pela frente.

O dia estava bem agradável. Parei num café na beira da trilha para pegar um carimbo e quando saí um senhor veio ao meu encontro com um gentil gesto de acolhida. Falava francês e me perguntou de onde eu era. Entendi a pergunta, mas respondi em inglês, ele não entendeu; respondi em español, tampoco; resolvi falar em português só por desencargo de consciência e, surpresa nenhuma, ele também não entendeu. Então, desenterrei o francês da oitava série no Colégio Marconi, lá pelos idos 1989 e respondi: “Je suis brèsilienne”. Ele abriu um largo sorriso, que não durou muito ante minha próxima frase que, obviamente, não poderia ser outra: “Je ne parle pas français”. Perguntei em inglês/espanhol, mas fazendo biquinho (tentar falar do jeito deles sempre funciona) se ele era français o Belgian (falei em inglês, foi o jeito), belga. Ele entendeu e respondeu bem enfático, “Français”.

O velhinho queria muito conversar comigo. E o pior, eu conseguia compreender as perguntas, que vinham acompanhadas de gestos – mímica funciona bem nessas horas! – mas não tinha muitos elementos linguísticos para respondê-las. Então, só me restava mesmo a mímica e vez por outra, um “Oui”. Ele me perguntou se eu estava fazendo o caminho sozinha – “Oui et tu”. Ele me disse que não, que estava com o grupo que caminhava à nossa frente. Nessa hora, uma alma veio em meu socorro: uma das amigas dele que falava inglês percebeu meu sufoco e veio conversar comigo. Aí eu disse a ela que falava um inglês meio ruim, pela falta de treino, mas falava bem o espanhol. E ela me perguntou indignada “E francês, você não fala?” Respondi que seria a próxima língua que eu aprenderia, depois de dar um up no meu inglês, necessário. Ela me exortou a estudar francês com urgência. Cá pra nós, até quero estudar francês, mas tenho coisas mais importantes a fazer antes disso. Despedi-me do grupo de franceses e segui na minha marcha que estava mais rápida que a deles. Nem parecia que meus pés estavam tão bolhados – santa moça brasileira cuidadora de bolhas! Deus a abençoe!

Na metade do trajeto, Melide, cidade até grandinha, conhecida por suas famosas pulperías, restaurantes especializados em iguarias feitas com polvos. A verdade é que eu nem sentia fome e, com mais 15 km pela frente, tudo o que eu não queria era encher a pança. Passei reto pelos tentadores restaurantes e procurei a Igreja de Santa María de las Nieves, românica, para uma pausa, sem muitas esperanças que estivesse aberta. Mas, para minha surpresa, estava. E tinha um guia!

O guia era um jovem valenciano, que me viu e me perguntou “italiano, espanhol”, já sabem qual foi minha resposta. Ele engatou a primeira e começou a falar sem nem respirar, parecia aqueles moleques que ficam em Natal, no maior cajueiro do mundo. Quando ele fez uma pausa para respirar, fiz uma pergunta, ele prontamente me respondeu, engatou a primeira de novo e foi até o final. Quando terminou, eu lhe agradeci e ele então me disse que havia percebido que eu não era espanhola e perguntou de onde eu era. Foi eu dizer “Brasil” e seus olhos brilharam, me perguntou como eu tinha aprendido espanhol, falei que havia estudado por quatro anos no Instituto Cervantes. E aí ele não se aguentou e me pediu para traduzir a fala dele do espanhol para o português do Brasil. Aceitei o desafio e ele me veio com um caderno cheio de traduções em tudo quanto é língua: tinha polaco, romeno, alemão… Enquanto eu traduzia as frases, ele falou para pessoas em inglês e em alemão. Fiquei impressionada! Quando terminei, ele fez algumas fotos minhas na porta da igreja, carimbou meu passaporte do peregrino e eu ia deixando uma gorjeta para ele, quando ele me disse que era voluntário e que as gorjetas eram para a igreja. Achei demais isso!

A visita a essa igreja foi demorada e surreal! Depois, contei esse episódio às espanholas e elas acharam um absurdo o carinha me fazer de tradutora. Eu até que achei legal…

Minha próxima parada para carimbo e para apreciar uma igrejinha foi em Boente, faltando 8 km para chegar em Arzúa. Já ia atravessar a estrada para alcançar a igreja e vi o padre em frente, chamando os peregrinos. Fui até ele, que me acolheu, perguntou de onde eu era. Entrei na minúscula igreja, fiz uma oração, umas fotos e já ia pegando o carimbo, quando o padre me parou ainda no altar e me disse para ficar, que ele daria uma bênção a todos ali. Foi um momento bem bonito. Cantamos aquela canção “Oh, vem conosco, vem caminhar, Santa Maria vem!” – os outros em espanhol, eu em português, baixinho. Depois, rezamos uma Ave Maria, um Pai Nosso e recebemos a bênção. Peguei o carimbo, agradeci ao padre e fui!

Esse final de caminhada foi árduo. Depois de Boente, até passei em uns lugares bonitinhos, mas de repente me deparei com uma ladeira enooorrrme e sem um pé de árvore. Subi naquele sol de rachar (lá nem tinha mamona, mas se tivesse teriam estourado), sem parar, nem olhar pra trás, senão empacava. Cheguei no final do morro e bebi toda a água que tinha! Dei uns cinquenta passos, olhei para a direita e vi um bar que tinha uma lixeira da Kibon (que na Espanha se chama Frigo). Não hesitei, atravessei a rua, comprei um picolé e me sentei à sombra, com os pés para cima. Cinco minutinhos de descanso.

Caminhei mais alguns metros, um quilômetro talvez, e encontrei meus amigos paulistas, descansando em um recanto lindo, com sombra e água fresca. Havia um riachinho com hidromassagem, tal era o movimento que as pedras faziam com a água. Nem tentei tirar as botas. Se o fizesse, tenho certeza que não conseguiria calçá-las novamente. Fiquei ali um pouco à sombra e terminamos o trajeto juntos. Chegamos em Arzúa umas 18h.

Na pensão onde tinha reserva, me informaram que a missa era às 19:30h. Eu estava lá às 19:33h e já estavam fechando a igreja! A missa foi às 19h. Bom, só me restou dar umas voltas, comprar meu postal e uns curativos novos na farmácia.

Na volta, encontrei os brasileiros tomando vinho, já no esquenta pro jantar. Falei um pouco com eles, recusei o convite pra janta, que a minha já estava paga na pensão e me despedi. Esse jantar, aliás, me deu mais saudade da mamãe: uma carne de panela com batata igual à que ela faz!

A essa altura, eu já estava bebendo vinho como se fosse água e me segurei para cumprir a meta de tomar só meia garrafa.

Fotos do longo dia de caminhada: clique aqui

O legado do Paulo Coelho (Arzúa – O Pedrouzo – 19,2 km)

Sem dúvida, o trajeto mais fácil. No dia anterior, meus amigos brasileiros haviam me dito que caminhariam até o Monte do Gozo e que não parariam no Pedrouzo. Assim, poderiam chegar a Santiago ainda sexta-feira de manhã. Resumindo, eu era a única brasileira naquela vilazinha.

No caminho, basicamente no meio de um bosque de eucaliptos (!!), avistei uma moça que ia levando seu mochilão e puxando um carrinho, com sua filhinha que não devia ter mais que uns três aninhos, enquanto falava ao celular. Quando passei por ela, lhe perguntei se precisava de alguma ajuda. Ela, já pegando de novo o celular, me agradeceu e recusou. Fiquei muito impressionada. Depois eu soube que meus amigos paulistas conversaram com ela e souberam que ela era lituana e fez todo o Caminho do Norte (815 km) a pé, puxando o carrinho com a filhinha! Uma grande lição de fé!

Cheguei cedo no Pedrouzo, umas 13:30h. Tomei um banho, tratei de calçar meus chinelinhos e fui explorar as redondezas. Descobri onde ficava a igreja, que estava fechada, claro. Vi ovelhinhas pastando (tão bucólico), parei em uma lanchonete, tomei uma coca bem gelada e fiquei lendo sobre a vida de Santa Eulália da Arca, padroeira local, que eu nunca tinha ouvido falar. Adoro história de vida de santo!
Voltei à pensão, deu até para tirar um cochilo antes da missa. E que missa! O padre chegou, ajustou todos os bancos, a igreja era pequena e não estava cheia. Mandou que todos se achegassem ao altar, que era lindo e ostentava uma concha gigantesca! A concha é um dos símbolos do Caminho de Santiago. Sentei-me ao lado das espanholas.

Antes de começar a missa, o padre perguntou “De onde são estes pecadores?” e começou a apontar, um a um, para dizer de onde éramos. Ao terminar, concluiu: “Todos espanhóis, exceto uma”. Por acaso, era eu.

O ponto alto da missa foi a homilia. O padre fez questão de nos preparar uma reflexão para o dia seguinte, quando chegaríamos a Santiago. Qual era o sentido do Caminho, afinal? Encontraríamos lá os restos mortais do apóstolo, o que aquilo significava? E desceu a lenha na comercialização do Caminho, que havia deixado de ser rota de peregrinação desde a década de 80, quando foram lançados muitos livros, especialmente o do brasileiro Paulo Coelho. Nessa hora, até me encolhi no banco; não queria que a ira do padre se voltasse contra a única conterrânea do principal responsável por ter desvirtuado o Caminho, pelo menos na concepção dele. Ele criticou a administração da Catedral, que fez da cerimônia do botafumeiro um comércio, já que era necessário pagar 400 euros para ver a peça em ação. Depois, falou mal dos carimbos, que antes eles tinham uma função, que eram uma espécie de credencial para que os moradores das vilas ao longo do Caminho dessem abrigo aos peregrinos. Hoje não fazia sentido, todo mundo pagava pra dormir. Finalizou exortando-nos a refletir na caminhada, pelo menos no último dia.

Ocorre que todo mundo ali queria um carimbo para ter a Compostela e então veio a dúvida: será que esse padre daria o carimbo? Ao final da missa, ele chamou todos no altar, deu uma linda bênção e destacou um ajudante para carimbar os passaportes da galera. Ufa!

Na fila do carimbo e depois na volta, conversei um bocado com as espanholas, superfinas! Elas elogiaram meu espanhol, porque “geralmente os brasileiros acham que falam espanhol, mas não falam nada” e que eu, ao contrário, falava bem. Disse a elas que havia estudado e que estava me preparando para a prova de proficiência. Era um alívio ouvir aquilo.

Voltei para a pensão, jantei no local indicado e fui dormir cedo. No dia seguinte, completaria 40 anos e chegaria numa comunidade fundada por um Apóstolo de Jesus! Seria um grande dia!

Veja as fotos do penúltimo dia

Missão cumprida (O Pedrouzo – Santiago de Compostela – 19,9 km)

Achei o trajeto fácil, apesar de umas subidinhas difíceis, mas acho que minha felicidade em chegar era tanta, que eu devia estar flutuando!

Logo no início, me deparei com um rapazinho de uns 14, 15 anos, deficiente. Tinha muita dificuldade em andar, mas eu vi que ele queria fazê-lo. Lição de vida, lição de fé! Todos os dias eu vi pessoas com dificuldade de locomoção ou com um peso mais, como era o caso da lituana. Eu sentia um misto de admiração e vergonha. Admiração pela fé dessas pessoas que enfrentavam grandes desafios para peregrinar e vergonha de, tendo a saúde perfeita, caminhar somente 160 km. Não era tanto sacrifício, já que minhas pernas são perfeitas, meu preparo físico ótimo, carregando nas costas apenas uma mochila leve e o peso dos meus pecados, tão bem lembrado pelo padre lá do Pedrouzo.

Logo no início, as espanholas me alcançaram e fiz a maior parte do trajeto de quase 20 km com elas. Foi bem legal. Paramos em uma igrejinha de Santa Luzia, de quem sou devota. A imagem da Santa era muito antiga! A igrejinha minúscula, toda em pedra, românica. Uma parada para oração importante. Aproveitamos e pegamos um carimbo.

Santiago é uma cidade bem grande, tem trânsito, aeroporto. Alcançamos a cidade velha, onde está a Catedral. Chegamos pela lateral esquerda da igreja e havia o perfeito cenário de um filme hollywoodiano sobre os tempos medievais: aquele lugar antigão, rústico, sem carro ou bicicleta; muita gente andando pé e um carinha tocando um instrumento que nem sei qual é, mas é medieval, só pode! Parecia uma gaita de foles. Fiquei tão maravilhada, tão emocionada, que nem me lembrei de tirar uma foto.

Alcançamos a Praça do Obradoiro, imensa. Fomos ao fundo, mirar a Catedral bem de frente. Uma moça cantava na construção atrás de nós, parecia um anjo. Tentei conter as lágrimas, em vão. Uma das espanholas me abraçou, achou linda a minha emoção. Elas estão na Europa, convivem com coisas assim a vida toda. Já haviam ido a Santiago outras vezes a passeio, já conheciam as coisas por lá. E aquela era minha primeira vez na Europa, num lugar santo.

A Catedral estava em reforma. Abriam na hora das missas. Convidei as moças para jantarem comigo, celebrar meu aniversário. Elas aceitaram com um lindo sorriso! Eu até queria a companhia de meus amigos brasileiros, mas me perdi deles. Isso não foi um problema, eu tinha ali, naquele momento, novas e especiais amigas!

Tirei uma foto em frente à Catedral e fui postar no Facebook e então vi várias mensagens lindas de aniversário, mais uma emoção. Eu ali, virtualmente longe de minha família, meus amigos, mas eles, que estavam presentes em toda a minha caminhada nas minhas orações, deixavam seus carinhosos recadinhos. Alguns tão lindos, sentimentos puros em forma de palavras, me fizeram chorar outra vez.

Da Praça do Obradoiro, fomos ao Escritório do Peregrino, apresentar nossos passaportes e pegar nossas Compostelas; a minha, no dia do meu aniversário de 40 anos!! De lá fui para o hotel, que ficava na cidade velha mesmo. Fiz meu escalda-pés, tomei aquele banho e piquei a mula! Eram quase cinco da tarde e eu queria visitar o Museu da Catedral antes da missa, às 19:30h.

O Museu não é nenhum Prado, claro, mas é um passeio pela história daquela igreja! Impossível visitar sem um audioguia. Lá, vi um botafumeiro (turíbulo) em exposição: 54 kg e um metro e meio de altura, quase do meu tamanho!

Estive em duas missas na Catedral, na sexta à noite e sábado ao meio-dia. Nas duas, vi o botafumeiro em ação, algo raríssimo de acontecer, como disseram minhas amigas espanholas. São necessários uns oito homens para impulsionar a peça, que oscila por toda a nave lateral da igreja, voa alto e veloz. É realmente lindo, impressionante. As duas missas foram protocolares e não fosse o espetáculo do botafumeiro, não teria realmente nada de especial a dizer.

Após a missa, na sexta-feira, enfrentei uma pequena fila para dar aquele abraço no apóstolo! Estava feliz feito pinto no lixo. Depois, visitei a cripta com os restos mortais de São Tiago, rezei por aqueles que amo, acendi umas velas. E fui jantar com minhas amigas num restaurante legalzinho, medieval também! Novidade pra mim, normal pra elas. O fato é que bebemos duas garrafas de vinho, consumimos três pratos de petiscos e a conta foi mais barata do que uma saída a dois aqui em Brasília, com apenas uma garrafa de vinho! Conclusão: o custo de vida em Brasília é surreal, fala sério!

Foi uma noite muito agradável, até ganhei um presentinho delas, um colar com a concha símbolo do Caminho! Uma recordação pra vida toda!

Fotos do último dia de Caminho

¡Adiós, España!

Amanheci cedaço. Um sol danado no quarto, não deu pra dormir. Eu tinha que arrumar minhas malas, porque pegaria o avião de volta à tarde. Só que meus pés não cabiam no meu sapatinho; a noite anterior havia sido de sacrifício. Não aguentava nem olhar para as minhas botas de trilha, importantes companheiras de jornada, mas já estava farta delas. O jeito foi me aventurar pelas ruas de Santiago e comprar uma papete. Aproveitei e comprei uma mala nova para acomodar melhor as lembrancinhas que havia comprado.

Após a missa do meio-dia, passeei um pouco pela cidade velha com as espanholas. Santas papetes! Depois resolvemos almoçar e elas me levaram para comer alguns pratos típicos: huevos camperos con papas fritas, melón con jamón e pimientos. Para beber, a cerveja local, chega de vinho! Como come-se bem e barato na Espanha!

Despedi-me de minhas amigas, fui ao hotel, peguei minhas malas, um táxi e rumei para o aeroporto. Feliz, completa e com um caminho inteiro pra contar!

Fotos da despedida

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1 Response

  1. 04/29/2015

    […] Detalhes aqui. […]