Complexo de majestade

chicoanisioJá diz o dito popular que quem não chora não mama. Choramos e conseguimos um acréscimo de água no leitinho da mamadeira dos nossos ilustres deputados federais: eles não usarão recursos públicos para a compra de passagens aéreas para seus cônjuges.  Bom, né? É, sim, muito bom, mas ninguém discutiu o real e o maior problema de todos: com o que se gasta o dinheiro público, afinal?

De acordo com a apuração do jornal Congresso em Foco, além de seu salário normal (que ultrapassa R$ 33 mil), cada deputado pode ter um gabinete com até 25 funcionários, e para isso são destinados, mensalmente, R$ 78 mil. Por mês, eles recebem um recurso chamado “Cotão”. É, cota não é coisa só de universidade federal, não, minha gente! A diferença é que o cotão dos deputados é para todos! Só os valores é que variam: o menor é de cerca de R$ 26 mil e o maior R$ 38 mil, todo mês. Com a grana do cotão, os deputados podem comprar passagens, fretar aviões, pagar correio, telefone, alimentação, combustível, consultorias, aluguel e outras despesas de seus escritórios políticos, assinaturas de periódicos, TV e internet e contratação de serviços de segurança. Enfim, eles têm um acréscimo para fazer tudo o que nós fazemos com nossos salariozinhos, exceto, claro, fretar aviões (difícil um assalariado fazer isso, não?) e contratar segurança — para nós, esta fica a cargo da polícia mesmo.

Nossos deputados ainda recebem uma estranha “ajuda de custo”, que sai em torno de R$ 1.113,00 — sim, a ajudinha que eles recebem custa mais do que o salário de muitos trabalhadores de verdade, pais e mães de família. Para completar, um auxílio moradia de R$ 3.800,00. Somando tudo com o salário, cada deputado recebe, por mês, cerca R$ 148 mil! Será que precisa disso tudo mesmo? Não vi ninguém discutindo isso. O foco foi mantido marginalmente nas passagens para as esposas; poderiam ter aproveitado o momento e levantado a lebre desses absurdos, mas não, isso sequer foi mencionado.

Aqui no Brasil é muito comum esse tipo de comportamento: não se discute o que realmente interessa, ficamos presos a problemas menores e passamos ao largo do cerne das questões importantes.

Dinheiro, aliás, convenhamos, é uma questão muito delicada para nós, brasileiros. A remuneração de todos os servidores públicos do Brasil, sejam eles federais, estaduais ou municipais, da ativa, aposentados ou pensionistas, por força de lei, é considerada de interesse público, ou seja, qualquer cidadão pode ter acesso a essa informação. O Governo Federal foi exemplar, e rapidamente disponibilizou a informação de todos os servidores ativos, aposentados e pensionistas da administração pública direta, tão logo a lei foi sancionada, em 2011. O curioso é que algumas autarquias, empresas e até governos estaduais, além de postergarem ao máximo a divulgação da informação, dificultam o acesso a ela. Os sistemas não funcionam, ou funcionam por tentativa e erro, já que não há clareza dos inúmeros e intrincados caminhos até se chegar à informação que interessa.

Ocorre que uma coisa é transparência, outra é cuidar bem do dinheiro. A “conta” dos deputados é encontrada facilmente na internet, mas não se discute para que é o dinheiro, qual a sua destinação.

Outro exemplo: o novo governador do Distrito Federal cortou o orçamento referente à compra de víveres para a residência oficial em R$ 2,4 milhões!! Na lista, preparada pela equipe de seu antecessor, figuravam 240 kg de bacalhau, mais de 800 kg de camarões variados, 30 toneladas de frango e carne e 6 toneladas de peixes.  Quantas famílias ele planejava alimentar com uma listinha de compras tão… peculiar?  E isso nos leva a outro problema muito comum, especialmente entre aqueles ligados ao poder: se consideram reis.

Já comentei em outra ocasião que assisto à série “Isabel”, da RTVE. Aos reis, toda pompa e circunstância. São (ou eram) incapazes de se vestirem sozinhos, comiam nababescamente, entre outras manias e atitudes das quais se valiam para demonstrar seu poder e exigir lealdade — lembrando que a série se passa na segunda metade do século XV, em plena monarquia absolutista. Ocorre que agora, no século XXI, guardadas as devidas proporções, os digníssimos Ministros do STF de nossa pátria tupiniquim dispõem de funcionários para neles vestir a toga, aquela capa de Batman que admirávamos no Joaquim Barbosa. Será que eles não seriam capazes de se vestir sozinhos? E a singela listinha de compras acima? E o cotão? Não seriam a versão nacional e atualizada das regalias absolutistas de cinco séculos antes?

Outro sintoma de nosso complexo de majestade é essa coisa de carro oficial com motorista, e de pararem tu-do quando um ministro ou a presidente passa. Vejam, isso faz parte do protocolo, porque essa semana mesmo a presidente foi vista fazendo compras num supermercado em Montevidéu e, vira e mexe, ela dá umas escapadas de moto aqui pelas bandas do Planalto Central. Parece que ela gosta de ser normal, mas, vamos combinar, se ela aparecer em qualquer supermercado aqui em Brasília, não sei não. Alguém pode querer dar uma taca nela, como fizeram com o Mantega há uns dias num hospital.

Há cerca de quatro anos, estive numa reunião no Ministério de Ciência da Argentina. No intervalo do almoço, só atravessamos a rua e fomos comer no restaurante em frente. Um restaurante normal, nada de mais. Quando entramos, vimos que o Ministro de Ciência deles estava lá, almoçando normal e tranquilamente. Agora, me respondam: sem ser em época de campanha, alguém já viu algum politicão brasileiro em um restaurante normal, ou numa padaria ou supermercado? É muito difícil, eles geralmente frequentam restaurantes caríssimos (viva o cotão!) e espaços muito reservados.

Mas há exceções, e em Brasília talvez tenhamos mais oportunidade de testemunhá-las. Já faz alguns anos, estávamos num café charmosinho daqui, um lugar caprichadinho, mas sem luxo e com iguarias maravilhosas. E eis que surge da rua um famoso ministro de Estado. Como eu sempre transito pela Câmara, Senado e Ministérios, quando vejo um figurão já sai automaticamente um “bom dia, senador”, “boa tarde deputado”. E nesse dia não foi diferente, o homem me olhou de frente e eu “boa tarde, ministro”.

Era final de tarde de um sábado meio chuvoso. Pois o ministro acenou com a cabeça, sorriu, veio à nossa mesa e nos cumprimentou com um aperto de mão. Quando nos levantamos para sair e passamos ao lado da mesa dele, ele quis conversar com a gente, dizendo que ele e sua esposa estavam comemorando a chegada de mais um netinho, uma alegria para a família. Surpresos com toda essa espontaneidade, restou-nos parabenizá-los e perguntar quantos netinhos eram, e ele, todo feliz, disse: “Agora são seis!”

Até hoje temos dúvida se ele nos confundiu com alguém ou se, simplesmente, viu em nós pessoas que os trataram bem, mas sem deferências, e, como estavam felizes, lhes parecemos suficientemente “confiáveis” para participar desse momento, não ficamos cochichando nem olhando para eles e tirando fotos. Eu até gostei do jeito dele, muito simpático…

Mas esse jeito é exceção. O normal é a arrogância, é o “sabe com quem está falando”, é o “eu sou isso”, o “eu faço, eu fiz” — o complexo de majestade elevado à máxima potência, reunido ao desejo de se sentir importante só por ser, não por contribuir ou fazer a diferença naquilo que realmente importa. Se assim fosse, nestes tempos em que necessitamos austeridade econômica, não seria interessante se nosso parlamento se oferecesse para ajudar, diminuindo seus salários e suas verbas extras? Seria o máximo, um de meus sonhos mais patrióticos. Na real, eles aumentaram seus salários este ano, assim como o cotão. Ah, é mesmo, são deputados!

Parafraseando o personagem imortalizado pelo saudoso Chico Anísio, “e o salário, ó”.

E um bom fim de semana procês!