Dicotomias contemporâneas

bordado1Dia desses, estava eu no supermercado, já na fila do caixa, onde são expostas revistas para que o consumidor fique vendo, se interesse e compre, já que estão todas devidamente lacradas, quando vi dois títulos, um ao lado outro: Vxxx Simples e Vxxx Luxo. A primeira era feita de material simplérrimo, poucas páginas, poucas cores; a outra, confeccionada com papel de primeira, muito colorida, com brilhos, grossa, com muitas páginas. Ambas custavam quinze reais: o luxo, pelo menos na teoria, custa o mesmo que a simplicidade.

Essa dicotomia despertou minha imaginação. Afinal, o que em nossa era define a simplicidade? Fiquei pensando, e concluí que ser simples pode até ser mais caro. Se você vai comprar produtos orgânicos numa feira mais confiável, por exemplo, quase tudo ou tudo ali custará bem mais caro do que os alimentos convencionais. Uma vida simples, penso, demandaria espaço e tempo para plantar, cuidar e colher em casa. Quem está disposto e tem tempo para isso atualmente? Sim, porque manter uma boa horta em casa não é tão fácil.

Há algum tempo, minha cunhada me pediu que eu a ensinasse a bordar e me disse que queria levar uma vida mais simples. Gosto de bordar. Quase todos os meus panos de prato, por exemplo, têm bordinhas em crochê que eu mesma teci e estou com outros tantos guardados para fazer isso, mas cadê tempo? Ou faço crochê ou escrevo esta crônica. Algumas de minhas toalhinhas de mesa eu mesma teci. Há alguns anos, cismei que queria uma toalha de mesa bordada. Procurei para comprar e achei caríssima. A toalha do supermercado, apesar de não ser bordada a mão, é bonita, até de boa qualidade e bem mais barata, mas ante meu desejo, decidi comprar os insumos e bordar eu mesma. Eram 120 quadradinhos para serem preenchidos, e levei alguns anos para concluí-la, acreditem, houve um ano em que nem quis olhar para a toalha, cheguei a enjoar dela. Mas, finalmente, a terminei no último carnaval. Ficou bem bonita, e, claro, ninguém tem uma igual. É até simples, mas acho um luxo essa minha toalha de mesa!

Voltando à minha cunhada: introduzi-a nos fundamentos do ponto-cruz, ela até bordou uns peixinhos em panos de prato, mas não conseguiu passar disso. Cadê tempo? Sua vida não é tão simples quanto ela gostaria.

Ter uma vida simples, obviamente, pressupõe muito mais do que a toalha de mesa ou a comida orgânica. A simplicidade, de fato, está nos pequenos gestos e ocasiões cotidianas. Reunir a família para almoçar em casa, que seja um arroz com feijão, e conversar, contar histórias, é algo simples e factível, mas nos dias de hoje, já está se tornando um luxo. Cada pessoa tem seus horários, seus compromissos com meio mundo e, claro, seus gadgets eletrônicos, que roubam a atenção do momento. Nem tudo é tão simples como parece.

Falando em gadgets eletrônicos, tenho um marido quase avesso a essas tecnologias. Tem um celular que ele considera um luxo, só porque tem câmera e rádio, nem é um smartphone. Antes de minha viagem para a Espanha, eu quis comprar um smartphone para ele, com o que chamam aí de zap-zap, para que eu pudesse me comunicar com ele em tempo real. Mas numa conversa de dez minutos concluí que perderia tempo e dinheiro. Seu principal argumento é que isso complicaria a vida dele, já que teria mais uma coisa para administrar, o tal do zap-zap. Disse que não queria nem ter celular, que um amigo dele simplesmente não tinha e vivia muitíssimo bem, obrigado. E ainda acrescentou que eu nem precisaria me comunicar com ele em tempo real, que havia vivido cinco anos nos Estados Unidos numa época em que isso não existia e nunca precisou se comunicar em tempo real com ninguém. Quando precisava mesmo, telefonava. E eu completei: “e, obviamente, pagava caro”. Ah, mandava cartas com frequência, adorava escrevê-las e mais ainda recebê-las. De fato, simplicidade é isso: escrever cartas a mão e esperar a resposta pelo Correio.

Impossível não concordar com o fato de que hoje em dia temos mais coisas para administrar, apesar da tecnologia “simplificar” muitos processos. São grupos no Whatsapp, redes sociais, e-mails chegando, todo mundo te encontrando facilmente e esperando ansiosamente por sua resposta. Os processos são até simples de operar, mas a nossa demanda, pelo menos a minha, aumentou vertiginosamente, o que pode ser um complicador, ao mesmo tempo em que simplifica muita coisa, inclusive evitando alguma perda de tempo, que poderá ser aproveitado com a simplicidade e a doçura de um passeio no parque, por exemplo. Ou não, como parece ocorrer na maioria dos casos.

Por outro lado, a comunicação, além de instantânea, ficou mais barata e, em muitos casos, mais eficiente. Um exemplo disso é a minha editora, a KBR Digital. Não adianta querer pegar o telefone e ligar. Normalmente ninguém atende. Nem pensar em ir até lá — tudo funciona (e bem!) online, rápido e muito barato, as respostas são praticamente no tempo real de uma ligação e custam muito menos que um interurbano. Acho que isso também é simplicidade, apesar de toda a tecnologia envolvida e do luxo de estar no casting de uma editora que agora está sediada nos States.

A tecnologia, sem dúvida, despersonaliza as pessoas. Penso que para relacionamentos profissionais até dá para engolir, mas nos relacionamentos pessoais, familiares, não. Ao mesmo tempo em que a tecnologia é capaz de “aproximar” as distâncias, distancia as pessoas pela superficialidade e simplicidade das operações.

Bom, com esta crônica pretendo somente propor uma reflexão sobre a simplicidade. Penso que vivemos cercados por dicotomias e sequer as percebemos. Perdemos muitos de nossos valores mais simples ao ganharmos alguma simplificação em nossa vida cotidiana, o que serviu, praticamente, para nos fazer trabalhar mais e produzir ainda mais.

E um bom fim de semana procês!

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