As quatro estações

As quatro estações— Lembro-me bem quando isto aconteceu comigo. Eu me senti exatamente assim, como você está agora.

— E quando foi? Faz muito tempo? – perguntei, interessado, àquele estranho que inesperadamente viera em meu amparo.

— A última vez já faz alguns anos.

— Última vez? Isso acontece mais de uma vez?

— Depende. Comigo já foi umas três vezes, mas cada vez parece que é a primeira. É difícil lembrar, sabe?

— E você estava assim, distraído, como eu?

— No meu caso foi um pouco diferente. Mas, qual é mesmo o seu nome?

— Desculpe, sou o Otávio. E você, como se chama?

— Napoleão, mas todo mundo me chama de Leão.

— Então, Leão, a gente se acostuma com isso?

— Acostumar, acostumar, não. Mas não tem jeito, meu caro Otávio, um dia, tudo se acaba mesmo. Mas sempre existe a chance de recomeçar, para nossa sorte. Ou não, vai saber…

— É que eu não queria que acabasse. Pelo menos não desse jeito.

— A maioria não quer que acabe de jeito nenhum, meu caro. Você quer me contar como tudo se sucedeu?

Pela primeira vez, encarei o Leão. Sua juba se resumia a uma rala cabeleira e uns fiapos arrepiados para os lados. Sua aparência era envelhecida e seu olhar chispava algo que eu não conseguia decifrar. Talvez sentisse algum prazer mórbido em me recepcionar na chegada àquele lugar infernal. Eu não conseguia ver ninguém mais. Somente aquele homem que se autodenominava Leão, mas sem ter nada de realmente imponente, estava em meu raio visual. Ele tinha um sotaque estranho, uma espécie de francês misturado com italiano. Dei um suspiro, mais por desesperança do que por alívio.

— Eu estava distraído. Minha mulher me traía quase que o tempo todo em que estávamos juntos e eu descobri.

— Entendo.

— Entende?

— Perfeitamente, meu caro Otávio. Prossiga.

— Enlouqueci. Como ela pôde fazer isso comigo? Depois de tudo o que fui capaz de fazer por ela?

— E o que fez por ela?

— Para começar, terminei um casamento de quase 30 anos só pra ficar com ela. Dizia que era seu maior sonho. Se eu soubesse… Minha primeira esposa era tão fiel.

— Como sabe?

— Nunca se casou de novo. Acho que nem namorado tem.

— Ahn. E o que mais você fez pela traidora?

— Acabei deixando quase 90% dos meus bens para a minha primeira esposa. É que ela não queria se divorciar, aí fazia mil exigências, filhos, herança deles, sabe como é. Achando que isso ia me segurar, coitada. Eu já não queria saber mais dela, nem das crianças. Crianças, nada. Adultos, já. Dei tudo o que ela exigiu e ainda mais um pouco. Só assim a megera assinou o divórcio.

— Megera? Ela não era a fiel?

— Ai, força do hábito. É assim que eu e a minha Mimi nos referimos a ela.

— Quanto tempo tem isso?

— A assinatura do divórcio? Uns três, quatro meses…

— Ahn. E a Mimi?

— A Mimi é tudo o que um homem pode sonhar.

— Imagino. Ainda mais um coroa endinheirado como você. Até o divórcio, claro. Mas os 10% que ainda sobrou era até muito, não?

— É, sim. Mas a Mimi não se importa com dinheiro. Eu é que sempre me importei. Mas deixei tudo por ela. Se ela me pedisse, fazia voto de pobreza. Mas de castidade, jamais!

Leão riu e me lançou um olhar quase lascivo, seguido de certa piedade. Estranho isso, principalmente naquele lugar. Continuei:

— Eu estava distraído, como sempre. Queria chegar logo ao shopping. Eu ia comprar uma jóia linda para a Mimi. Adoro presenteá-la. Ocorre que eu passava com meu carro já na rua próxima ao shopping e vi a Mimi de mãos dadas com um fortão.

— Podia ser irmão dela.

— Não era. Mimi não tem ninguém. Foi criada num orfanato e fugiu de lá com 16 anos. Arranjou emprego de faxineira e começou a estudar. Sua faculdade de Secretariado Executivo foi paga com muito esforço.

Leão me encarou. Os cabelos ralos e arrepiados pareciam se mover acompanhando a expressão de seu rosto. Prossegui, precisava desabafar e Leão parecia experiente.

— Conheci a Mimi quando a contratei como minha secretária. A princípio, tudo muito profissional, mas seu perfume me perturbava. Ela até usava roupas discretas, de um bom gosto sóbrio, capaz de valorizar, sem vulgaridade seu belo corpo. Um dia, ao sair do escritório, convidei-a para um café e descobrimos muitas coisas em comum. Como eu, é aficionada por literatura, autores clássicos. Soube que ela ainda não havia lido meu livro predileto, “Os Sertões”, do Euclides da Cunha. No dia seguinte, cheguei no escritório com um exemplar para ela. Em uma semana, ela o devorou e me convidou para um café para conversarmos sobre o livro. Ah! Que fim de tarde!

— E quem pagou a conta?

— Eu, claro. Vê lá se eu ia deixar uma dama tão delicada como a Mimi pagar a conta.

— Sei como é. Mas aí você a viu com o fortão.

— Vi. E a vi beijando o cara na boca. Não aguentei. Num segundo, passou pela minha cabeça uma enormidade de lembranças de momentos com Mimi. Foi aí que me dei conta que era tudo mentira. Parei o carro na primeira oportunidade, peguei meu revólver, eu sempre andei armado e fui.

— Queria matar quem?

— O imbecil filho-da-puta que seduziu minha Mimi. Jovem, inexperiente, deve ter caído na lábia do falastrão. Fui decidido a matá-lo e acertei-lhe um tiro. Não o matei. Mimi, assustada, me encarou como eu nunca a tinha visto.

— Chorava?

— Não. Bufava. Tirou um revólver da bolsa e me acertou. Pelo visto, o tiro dela foi mais eficiente que o meu, porque o filho-da-puta fortão estava vivo ainda.

— E você sentiu o quê?

— Não me lembro muito. Deixa ver…

— E agora, está sentindo alguma coisa?

— De dor física, nada. Só um desespero, uma ligeira falta de ar e uma vontade de sair correndo, mas parece que estou amarrado. – fiz um esforço para tentar me lembrar de mais coisas. Mas nada vinha à minha mente.

— Quem me trouxe pra aqui? – indaguei, vencido.

— O mesmo que traz todos pra cá, Otávio. Nem adianta eu dizer o nome certo. Vou falar só uma conhecida alcunha que não te assuste demais. Lúcifer.

Gelei por dentro, porque por fora, eu já ardia.

— Aqui é o inferno?

— Céu, inferno, purgatório… Nomes e ilusões inventadas pelos homens antes de chegarem aqui. Nós chamamos de estações.

Calei-me. Aquilo confirmava que eu estava morto e no inferno. Mas se o inferno se chamava estação, significava que podia passar um trem, pelo menos… Leão prosseguiu:

— A cada estação que passamos, vamos nos aproximando do recomeço. Você até que não chegou numa estação tão ruim. Mais umas quatro e poderá recomeçar.

— Quanto tempo em cada estação?

— Aí varia, Otávio. Depende de muita coisa, principalmente de sua vontade de se acertar lá em cima. Uma perguntinha: quem foi a última pessoa que você viu antes de apagar?

— Rogéria, minha ex-mulher.

Silêncio. Só era possível ouvir uns gemidos ao longe. Comecei a entender o que havia acontecido.

— A Rogéria… Tenho uma dívida grande com ela… – disse, arrependido de minha paixão sórdida, mórbida.

Leão bufou. Quase um rugido, mal comparando:

— Por favor, otário, digo, Otávio. Quando apagamos assim, a última pessoa que vemos é quem nos fez passar por isso.

— O quê? A Rogéria?

Leão olhou-me firme. Seus olhos, agora, chispavam ondas de calor. Encará-lo me cegaria. Mas também, àquela altura, que diferença faria?

— Aquela megera filha…

— Poupe seus palavrões, otário. A Mimi foi contratada pela Rogéria, idiota! A megera pegou 90% dos seus bens; usou 2% para pagar a Mimi e os seus 10% ficaram automaticamente para os seus filhos. Agora a Rogéria está num bem bom no Caribe, feliz com um fortão jovem, bem apessoado, um amante que ela arranjou bem antes da Mimi aparecer. Ela precisava arranjar a Mimi para você; ela é que tinha que ser a traída. Não ia sair de mãos abanando e ainda sendo a piranha da história, entendeu?

Atordoado com tudo aquilo, comecei a me lembrar de várias coisas. Mas agora não adiantava mais. A Rogéria-megera tinha me eliminado e tudo indicava que, na melhor das hipóteses, eu estava no purgatório.

— Preciso acabar com a Rogéria!

— Não se preocupe com isso, que a hora dela vai chegar. Por enquanto, aproveite sua estada aqui. Acho que você não deve se demorar muito. Já eu estou demorando até demais.

— Leão, você disse que estava aqui há quanto tempo, mesmo?

— Alguns anos.

— Sim, mas quantos?

— Quase duzentos.

— O quê? Isso tudo? Ai, meu Deus!

— Não adianta rezar agora, Otávio. Ele nem tem tempo de ouvir tantas súplicas, coitado, ainda mais de quem já veio pra cá sem escala nenhuma. Tempo, aliás, é algo muito impreciso, não acha?

Comecei a me interessar por aquela figura. Agora que meus olhos estavam acostumados com a escuridão, pude ver que tinha fundas entradas de calvície. Já estavam virando saídas, diria a Mimi. Leão vestia roupas antigas, como de duzentos anos atrás mesmo.

— Bom, te contei minha história, Leão. Conte-me a sua.

— A minha você já conhece.

Encarei-o silenciosamente. Como poderia conhecer sua história, se era a primeira vez que o via? Não resisti:

— Bom, já que não quer dizer e ficou esse clima, só posso perguntar qual era a cor do cavalo branco de Napoleão? – E gargalhei com vontade.

— Para seu governo, nunca tive uma montaria fixa. E fique sabendo que eu até gostava de mulas. Animais fortes, resistentes. Se tivesse ido com elas, talvez não tivesse perdido Waterloo. E que cara essa, Otávio? Sou eu mesmo, seu otário. Pergunte a qualquer um aí.

Eu até poderia reconhecê-lo se ele não estivesse tão desfigurado. Quase afônico de surpresa, perguntei-lhe:

— E quanto tempo mais aqui?

— Dessa estação em diante é mais rápido. Aqui é a estação em que pagamos por todos os desrespeitos, injúrias, violências e agressões que dirigimos às mulheres com quem convivemos. Você nem tem muito a pagar, Otávio. Eu tenho que passar por todas as sete estações. Não via a hora de chegar aqui na quarta.

— Então…

— Sim, meu caro. Vamos reencarnar juntos. Seremos parceiros e vamos conquistar o mundo.

— Mas a única coisa que eu quero é me vingar da Rogéria!

Napoleão faiscou toda sua empáfia com um olhar mortal. De repente, desembainhou sua espada e então, me lembrei de que ainda estava com o revólver na mão. Fechei os olhos e atirei. Seja lá o que Deus ou Lúcifer ou os dois quiserem!

Acordei sobressaltado, molhado de suor. Levantei a cortininha e olhei pela janela. O trem estava parado para embarque e desembarque. Fiquei observando movimento. Quando voltou a andar, vi que faltavam só quatro estações para chegar ao meu destino. Passeei a vista pela cabine da primeira classe. Rogéria ainda estava na cama ao lado, nua, os olhos abertos, com um sorriso de lado, enquanto um tênue fio de sangue escorria de sua boca.