Pequenas alegrias cotidianas

hazel soaresO mês de julho foi o ó, pra dizer o mínimo. Estourou a guerra na Faixa de Gaza, faleceram quatro super escritores brasileiros, um viaduto despencou em Belo Horizonte durante a Copa do Mundo, um avião foi atingido por um foguete na Ucrânia e outro caiu no Mali, a Argentina está dando o calote nos seus credores e vai afundando o Brasil e o MERCOSUL junto, nossa seleção de futebol fracassou vergonhosamente jogando em casa. Hoje se inicia o mês de agosto, e eu espero, sinceramente, que seja a gosto de Deus, porque já chega, né?

Mas apesar de tanta desgraça em tão pouco tempo, pequenas vitórias cotidianas servem para alegrar corações esperançosos como o meu. Nesse mesmo mês de julho, saiu o resultado do vestibular da Universidade de Brasília e um flanelinha foi aprovado! Um flanelinha de 52 anos. Sua vontade de estudar era tanta, que ele suplicou algumas vezes por uma bolsa de estudos num cursinho próximo ao seu ponto de trabalho. A direção, ante a insistência, decidiu dar uma chance ao Sr. José Mário, deu-lhe a desejada bolsa de estudos e o material para as aulas. Valeu o investimento: em um ano, ele se tornou aluno da UnB. Vi uma entrevista com o Sr. José Mário e ele, feliz da vida, já pensa no futuro: quer fazer um doutorado. Alguém duvida que ele consiga? Eu não.

Nessa mesma linha, outro flanelinha que há alguns anos conseguiu passar no vestibular de uma faculdade particular para cursar Direito passou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Detalhe: ainda falta um semestre para o Sr. Flávio terminar o curso. Pai de família, conseguiu estágios e outros trabalhos enquanto estuda, mas continua trabalhando como flanelinha nos períodos de folga para completar a renda.

Outro caso interessantíssimo é o da senhorinha de 97 anos que está se formando em Direito, em Minas Gerais. Era o sonho da vida dela e ela teve que esperar a viuvez para torná-lo realidade. Teve a ajuda dos filhos e dos netos para ir às aulas e se orgulha em dizer que era sempre a primeira a chegar. Completou o curso e pegará seu canudo na próxima semana. Tem consciência de que, na sua idade, pouco poderá fazer profissionalmente, mas está disposta a compartilhar o conhecimento adquirido, ajudar as pessoas, orientá-las. E aí vem a pergunta: tanto jovem esperando o que para voltar a estudar? A viuvez? Acho que não.

Histórias como essas mexem comigo. Essas pessoas tiveram que fazer suas próprias oportunidades; a vida não lhas deu. E aí eu fico pensando: se tivéssemos escolas públicas de qualidade e programas para a permanência de alunos carentes nas universidades, poderíamos ter alguns gênios cientistas ou juristas de destaque ou pensadores magníficos, artistas fenomenais e, por que não, prêmios Nobel. Quantos geniosinhos nosso país perdeu para o subemprego, para o tráfico de drogas ou para a criminalidade, simplesmente porque essas pessoas não tiveram oportunidade? Ok, ok, a quantidade de gênios por aí não é tão grande. Mas que teríamos menos subempregos e menos criminalidade, isso certamente teríamos. Quantas pessoas como o Sr. José Mário e o Sr. Flávio completam o ensino médio e sequer pensam em fazer uma faculdade? E quantas pensam, entram, mas não conseguem terminar o curso porque precisam trabalhar para se manter? Sim, porque nas universidades federais as aulas tomam o dia inteiro, e se a pessoa precisa trabalhar para comer e pegar ônibus para estudar, como faz? Acaba abandonando o curso, com dó e piedade, mas a sobrevivência clama pelo tempo das aulas. É uma realidade triste, mas bem mais comum do que imaginamos, infelizmente.

Conheço algumas pessoas que fizeram suas próprias oportunidades. Sem condições de fazer um cursinho, meteram a cara nos livros sozinhos e conseguiram vaga em universidade federal. Tiveram que ser melhores que muitos para conseguir uma bolsa de iniciação científica e ter uma graninha para a comida e o ônibus. Hoje, vejo essas pessoas bem colocadas, apoiando os irmãos mais novos, transformando não apenas sua vida, mas de todos os que estão ao seu redor. Contra todas as perspectivas, venceram com louvor. O Sr. Flávio tem filhos pequenos e certamente poderá dar a eles algumas oportunidades que não teve.

Na contramão, conheço muito mais gente que tem várias facilidades ou, pelo menos, dificuldades não tão difíceis de superar, a vida até dá algumas oportunidades, mas estudar não passa de um sonho irrealizável. São desculpas e mais desculpas, mas o que realmente impede essas pessoas de seguir em frente? Penso que, infelizmente, a dura realidade educacional brasileira ainda é o principal impeditivo para termos cidadãos mais qualificados e capazes de contribuir mais efetivamente para toda a sociedade. Mas vendo os exemplos dos flanelinhas, é possível constatar que muitas realizações dependem do que existe entre o sonho e a oportunidade: a vontade, o desejo de tomar nas próprias mãos as rédeas da própria vida.

Um detalhe importante: pelo que pude apurar, nenhum dos dois flanelinhas é ou foi beneficiário dos programas sociais do governo, o que os torna ainda mais preciosos. Os apoios que conseguiram foram após demonstrar aos seus benfeitores a sua capacidade e a sua vontade de seguir em frente, apesar de todos os percalços. São pessoas assim, que não se conformam com o status quo, que fazem a diferença na comunidade onde vivem.

Apesar de nossa época ser tão linkada em quase tudo o que acontece em quase todos os lugares do mundo, e até fora dele, olhar para o quintal de nossa casa de vez em quando pode nos trazer agradáveis surpresas e nos fazer enxergar além das aparências. Do jeito que a coisa anda por aqui, isso é cada vez mais difícil, mas é plenamente possível. É preciso apenas ter os olhos e o coração abertos.

Um bom fim de semana procês!

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