Filosofia de sexta

Picture_of_SchopenhauerEstou às voltas com a elaboração de um novo site, integrante da Rede KBR de autores e livros. Entre outros planos para o meu novo espaço, penso em uma seção chamada “Para inspirar”, com versos, frases e pensamentos de autores consagrados. E foi em busca de algo significativo que voltei a Arthur Schopenhauer e sua obra A arte de escrever. Dentre as diversas frases e pensamentos que marquei na primeira vez que o li, uma em especial me levou a algumas reflexões, e gostaria de compartilhar o que tenho pensado a respeito da “inacreditável tolice e a perversidade do público que deixa de ler os espíritos mais nobres e mais raros de cada gênero, de todos os tempos e lugares, para ler as besteiras escritas por cabeças banais que aparecem diariamente, que se espalham a cada ano em grande quantidade, como moscas”.

Schopenhauer escreveu essa pérola no século XIX, mas, de certa forma, continua tão atual, que poderia ter sido escrita ontem. Se nosso filósofo retornasse à vida e espiasse o que está acontecendo, e como, pediria pra morrer de novo. Nas redes sociais, então, aparece tanta bobagem, que eu até concordo com o alemão.

Mas a verdade é que o século XXI é muito diferente do século XIX, a começar pelo fato de que a maioria da população está alfabetizada e a informação flui instantaneamente. Portanto, há muito mais “besteiras escritas por cabeças banais” do que jamais supôs Schopenhauer. E muito mais acessíveis também.

Acontece que essas bobagens podem ter um efeito inusitado: ser a porta de entrada para o mundo da leitura.

Não faz muito tempo, em conversa (virtual) com uma amiga, descobrimos os livros idiotas que havíamos lido — nosso passado negro literário. Morremos de rir (rsrsrs e kkkkk), e concluímos que foi uma etapa importante para despertar em nós o gosto pela leitura. Não tínhamos maturidade para compreender as obras literárias relevantes, mas chegamos lá, digamos, passando por várias etapas, a ponto de, atualmente, nos atrevermos a escrever, acreditando, claro, que não fazemos parte das cabeças banais que escrevem besteiras.

Naturalmente, vencemos diferentes etapas porque fomos capazes de apurar nosso senso crítico, que ao longo do tempo nos permitiu fazer escolhas literárias mais… sensatas. Também tivemos o apoio de nossas famílias, pois nossas casas contavam com “bibliotecas” humildes, mas significativas, com obras de Monteiro Lobato e Ana Maria Machado e clássicos da literatura universal. Estudamos em escolas que incentivavam a leitura e indicavam bons livros (eu adorava os livros da Coleção Vagalume).

Na época de Schopenhauer, uma minoria da população sabia ler. Hoje, esse quadro mudou e, apesar de a maioria das pessoas saber ler, ter habilidade para compreender e analisar o conteúdo já é outra história. E aí vem outra máxima do nosso filósofo:

“Ler significa pensar com uma cabeça alheia, em vez de pensar com a própria. Nada é mais prejudicial ao pensamento próprio (…) do que uma influência muito forte de pensamentos alheios, provenientes da leitura contínua.”

Isso é particularmente verdade quando não se tem conhecimento sobre determinado assunto, e Schopenhauer é bastante severo ao considerar que somente os cientistas seriam capazes de ler e ter pensamento próprio, porque detêm o conhecimento. Por outro lado, acredito que se a pessoa lê bastante, poderá se deparar com linhas de pensamento distintas e… bingo! Terá que pensar a respeito e, eventualmente, até estudar o assunto, para se decidir com qual delas concorda. E eu, otimista, creio verdadeiramente que isso pode ser o começo do desenvolvimento da capacidade de compreensão e análise, por que não?

O que eu quero dizer com tudo isso é que acredito na leitura como ferramenta para desenvolver capacidades diversas, entre elas, a escrita. E que não é vergonha passar por livros ruins. Faz parte do processo. E mesmo que muitos empaquem no meio ou até no início, sempre há os que se salvam das Biancas e Sabrinas. Eu mesma sou um bom exemplo disso. Tudo começou com uma amiga (outra) que levava esses livrinhos para ler nas folgas do trabalho — nessa época, eu tinha uns 13 anos e dava uma mão na gráfica da família durante as férias. Um dia me emprestou um, li e gostei. E daí foi um pulo para o vício, que me levava a gastar toda a minha parca “semanada” na banca de jornais. Fui salva por Agatha Christie, nas férias escolares seguintes — indicação de uma amiga também. Depois, ávida por ler mais, ataquei a minibiblioteca caseira e aí me encantei completamente por José de Alencar e Bernardo Guimarães. Segui para uma leitura mais pesada, Eça de Queiroz, seu padre “criminoso” e o primo que só queria pegar a moça desprevenida — isso, bem antes da indicação da escola, que, por óbvias razões, não indicou O amante de Lady Chatterley, mas tracei-o também, antes dos 16 anos.

Bom, como vocês puderam perceber, a coisa avançou, e hoje em dia consumo tipos mais profundos e até me atrevo a discutir com Schopenhauer, apesar de seus escritos de dois séculos. Posso estar completamente equivocada, mas tenho meu próprio pensamento sobre diversos assuntos, não porque detenha grande e diverso conhecimento científico, longe disso, mas simplesmente porque leio (e aprendo) bastante.

Finalmente, o próprio Schopenhauer declara que “o mais belo pensamento corre o perigo de ser irremediavelmente esquecido se não for escrito”. Só que belos pensamentos são raros, raríssimos, e como os encontraremos se não lermos? Como toda arte, também na literatura só serão conhecidas no futuro aquelas obras que realmente tenham valor artístico, histórico, científico ou filosófico. E muito embora estejamos expostos às ditas “besteiras”, poderemos nos deparar com verdadeiras obras de arte, que certamente se perpetuarão ao longo dos séculos, provocando inquietações e reflexões, talvez até novas ideias. Está aí Schopenhauer que não me deixa mentir, com seus escritos de dois séculos atrás.