Figuras

Foto Vânia Gomes

Foto Vânia Gomes

Para uma bióloga de campo, chega um momento em que não dá mais pra ficar na cidade. Tem que fugir pro mato, e foi exatamente o que fiz junto com meu marido (que não é biólogo, mas gostaria de ser) no feriadão de Corpus Christi. O destino escolhido foi a Chapada dos Veadeiros, em Goiás.

A Chapada compreende mais de um município do Estado, mas optamos por ficar na Vila de São Jorge, pertencente ao município de Alto Paraíso.

Apesar de a rústica beleza do cerrado da região e as inúmeras histórias de OVNIs (sim, discos voadores mesmo) que rondam o local serem os assuntos mais esperados quando se fala na Chapada dos Veadeiros, vou fugir um pouco disso. Tampouco vou mencionar a gastronomia local (que é incrível, vai de restaurantes chiques, com cozinha internacional, até a comida típica goiana), a variedade de pousadas e o bonito artesanato esotérico exposto na rua principal.

Gostei de tudo isso, mas me encantei mesmo foi com as pessoas que encontramos por lá, a começar pelo dono da pousada onde nos hospedamos, que há 12 anos, exausto, largou a vida na cidade e “fugiu” para São Jorge, queimou o título de eleitor e tudo o mais. Sua mulher é artesã, e expõe para venda na própria pousada. Têm três filhos, todos já adultos: um é acupunturista zen, um ator, e o terceiro, definido pelo próprio pai como “mauricinho”, há anos não dá as caras na pousada.

Uma vez por mês o casal vai a Brasília para ver os filhos e a netinha e fazer algumas compras para a pousada. E é só. Vivem tranquilamente ali, em São Jorge, sem nada que os perturbe, exceto o governo que vai lá de vez em quando fiscalizar. Ele nos deu dicas preciosas de passeios e um mapinha muito didático dos atrativos locais.

No primeiro dia decidimos fazer a trilha dos saltos do Rio Preto, dentro do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Como era de se esperar, o parque estava bem cheio. Mas isso não foi problema, fomos andando devagar, apreciando a paisagem e fotografando tudo que era possível. Bom, chegamos aos saltos, rolou banho nas piscinas naturais e decidimos ir às corredeiras, outro atrativo do local. Só que a volta… Subida íngreme, difícil. No meio da ladeira, se é que podemos chamar assim, havia um rapaz parado numa bifurcação, sem saber aonde ir. Perguntou-nos o caminho e eu pude localizar a seta amarela meio apagada, indicando a nossa direção. E fomos: eu na frente da expedição, meu marido atrás de mim e o mané atrás dele — mané da ilha de Florianópolis! Percebemos facilmente pelo sotaque, não durante aquele subidão, que ninguém teve fôlego para conversar, mas depois, no caminho para as corredeiras. O rapaz tinha viajado de moto, sozinho, de Floripa até São Jorge! A moto? Uma Tornado 250 cilindradas, nada que se pudesse chamar de “estradeira”. Pelo que entendi, ficou desempregado, pegou a grana e se mandou. Seu objetivo era conhecer um pouco das cinco regiões do Brasil: saiu do sul, passou pelo sudeste, estava no centro-oeste. Dali seguiria para o Jalapão, em Tocantins e, para finalizar, daria um rolé pela Bahia. Contou-nos que, em outra ocasião, dera a volta na ilha de Florianópolis de caiaque, viagem que durou sete dias! Fomos conversando até chegar às corredeiras. Lá, comemos frutas que tínhamos levado a título de almoço, nos despedimos do rapaz e voltamos para a entrada do parque. Saldo do dia: 10 km de caminhada em cinco horas, paisagens lindíssimas, banho em piscinas naturais, a oportunidade de conversar com mais uma figura interessantíssima… e as botas do meu marido totalmente destruídas.

No segundo dia, resolvemos conhecer um atrativo que ainda não havíamos tido o prazer: o encontro das águas do rio São Miguel com o rio Tocantinzinho, lugar magnífico, praias naturais de areia branca ao longo do Tocantinzinho. E enquanto admirávamos esse encontro forte, visceral, das águas cristalinas de um com as águas azuis de outro, conhecemos pai e filho canoístas. O pai estava “mapeando o terreno” para uma futura expedição de canoagem, e nos contou histórias. Sua última expedição tinha sido pelo Rio São Francisco, 90 dias no caiaque! O rio Tocantinzinho prometia ser difícil: muitos cânions, trechos com corredeiras fortes. Os dois seguiram e nós continuamos por ali, os encontramos novamente na prainha e meu marido experimentou o caiaque profissional, bem diferente daqueles caiaques de aluguel disponíveis na praia. Pessoas finíssimas! Saldo do dia: fotos maravilhosas, inúmeras picadas de mosquitos e mais gente boa que conhecemos.

A viagem terminou com uma surpresa agradabilíssima: enquanto colocávamos nossas malas no carro para voltar, três jovens, duas moças e um rapaz, nos pediram carona até Alto Paraíso. Voltamos com o carro cheio, de gente boa, jovem, com experiências diferentes e outra maneira de ver a vida. As garotas trabalhavam numa empresa organizando cursos de formação tecnológica. Viviam de uma cidade a outra conhecendo as pessoas, a cultura e os atrativos locais. Diria que eram nômades, passavam de três a seis meses numa cidade e depois se mudavam para outra, e assim tinham conhecido o amigo que estava com elas. E contaram mil histórias, aventuras de viagens, pessoas que conheceram, o que tinham feito em São Jorge durante o feriado, planos de viagens futuras, enfim, o papo com eles foi tão bom, a atmosfera no carro era tão leve, divertida, que nem vimos o tempo passar.

Chegamos a Alto Paraíso já sabendo que as garotas seguiriam para Formosa, e resolvemos deixá-las mais perto. Quando nos aproximamos do trevo de Formosa, achamos melhor deixá-las em casa. No meio da estrada é que não seria: quando se tem filhas, fazemos para as filhas dos outros o que gostaríamos que fizessem para as nossas.

O rapaz seguiu conosco até Brasília, porque seu destino era Itumbiara. E sua história não era menos interessante. Tinha decidido mudar sua vida e viajar mundo afora. Estava trabalhando para juntar uma grana e passeava nas folgas, há alguns meses tinha encontrado mais que companheiras de viagens e aventuras, mas amigas para a vida toda. Saldo do terceiro dia: viagem de volta agradável, novos amigos e uma fome colossal!

Essa viagem, especialmente o trecho da volta, me fez refletir sobre algumas coisas: essas figuras têm outro jeito de ver a vida, com mais leveza, mais simplicidade, sem as grandes (e chatas) responsabilidades que tenho que assumir. Vivem a máxima “menos é mais”, porque vivem com bem menos grana do que vivemos aqui em casa (e estamos muito longe de sermos ricos), mas vivem com muito mais emoção, aventuras e aprendizado, e muito menos estresse. São mais alegres, mais livres e menos preocupados.

Cheguei a planejar uma magistral virada de mesa, um belo chute no balde, viver de escrever, dar aulas particulares de ciências, biologia e matemática e juntar grana só para as viagens e comida. Mas aí me lembrei de que gosto de bons vinhos, pousadas de charme, comida gourmet. Adoro ir pro mato, mas também gosto de Nova York, Paris, Roma. E aí, claro, não vou virar mesa nenhuma, porque essas coisas custam caro. Vou me resignar às minhas escolhas e vou ficar aqui, admirando meus novos amigos pela coragem, pela alegria de viver e se aventurar. Mas não cruzarei os braços: seguirei jogando na mega-sena!

publicado também no Crônicas da KBR

1 Response

  1. 06/27/2014

    […] Publicado também aqui […]