Um cafezinho

mendigoHá alguns domingos, enquanto pagava uma revista que acabara de adquirir na banca da vizinhança, adentrou o recinto um jovem rapaz, sujo, maltrapilho, e se dirigiu a mim com voz enérgica, exigindo que eu lhe desse um real para tomar café. Disse-lhe que não tinha (e não tinha mesmo), mas se tivesse também não daria.

Naquele momento, pensei que não tinha que pagar café para um marmanjo daqueles, um jovem forte para o trabalho. Mesmo porque o dinheiro de que disponho é meu e foi conquistado; ninguém me deu, recebi como resultado de um mês de trabalho. O problema é que esse episódio mexeu um pouco comigo: onde foi parar a minha compaixão?

Pensei um pouco a respeito. Em outros tempos, o pedinte tinha uma dignidade, pois aquela situação era extrema, frente à falta de trabalho temporária e à necessidade de alimentar a si e à família. Uma passagem do livro O Quinze, de Rachel de Queiroz, traduz bem o que estou querendo dizer:

E a mão servil, acostumada à sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido… mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante. A vergonha da atitude nova o cobriu todo; o gesto esboçado se retraiu, passadas nervosas o afastaram.

Só para reforçar, O Quinze é um romance que retrata a forte seca que assolou o nordeste brasileiro em 1915, quando milhares de retirantes deixaram o sertão rumo às cidades e sofreram as mais terríveis misérias durante a travessia. Enquanto lia esse livro, o primeiro escrito pela imortal Rachel, me emocionei em diversas páginas. Senti compaixão pelos personagens por ela criados, que personificavam milhares de pessoas que passaram por situação semelhante em 1915, e depois, e depois…

Mas o que vemos hoje? Bom, para início de conversa, o Brasil é a sétima economia do mundo e está numa situação bem próxima do pleno emprego. Posso entender faltar trabalho para pessoas a partir de 50 anos, mas para um jovem robusto? Num país onde ainda há muita infraestrutura a ser construída? Sinceramente, tenho grandes dificuldades de compreensão. E acho que isso, aliado ao modo como o indivíduo se dirigiu a mim, pode explicar, em parte, a minha falta de compaixão.

O pior de tudo é que jovens robustos sem trabalho parecem se multiplicar pelas quadras da capital federal, e, definitivamente, a nossa “crise” não chega nem perto do que foi e ainda é na Espanha, onde mais de 50% da população jovem está desempregada. Aqui, por outro lado, a taxa de desemprego tem diminuído dia após dia. Aí só me resta perguntar: quando foi que fizeram da miséria uma empresa? A descrição de miséria feita por Rachel de Queiroz ao longo de todo O Quinze não combina nem um pouco com a situação atual.

Contudo, creio que outros fatores relacionados ao modo de vida contemporâneo também influenciam nossa falta de compaixão. Percebo, por exemplo, que a sociedade em geral está cada vez mais ensimesmada, incapaz de voltar seu olhar ao próximo. Estamos ficando brutalizados, quase imunes à miséria humana. É provável que estejamos enfrentando uma crise de humanidade. A sociedade como um todo está egoísta, tanto o jovem que me exigiu um real, quanto eu, que simplesmente não quis lhe dar. Fiquei chocada com a forma como ele falou comigo, mas não me chocou tanto o modo como ele estava vestido, seu cheiro, a sujeira, a barba grande e malcuidada… E isso tampouco chocou a mulher da banca, nem o homem que estava saindo do recinto quando o jovem entrou. Seria esse jovem usuário de crack? Teria família? Moraria em alguma cidade-satélite de Brasília? Como foi parar na rua? Não teria vontade de trabalhar? De tomar um banho? De fazer a barba? Um café seria suficiente para “aquecê-lo”, naquela manhã domingueira ensolarada?

Tendemos a ignorar essa miséria e nos trancamos em nossas “fortalezas”, porque, para completar o quadro, a criminalidade nas grandes cidades está associada também a pessoas com o “perfil” desse jovem. Somos abordados o tempo inteiro nas ruas e está impossível saber se uma pessoa se aproxima para nos pedir esmola ou para nos assaltar. Com medo, nos prendemos à suposta segurança de nossas vidinhas ensimesmadas. E não é à toa: eu mesma já passei pela terrível experiência de ser assaltada enquanto esperava um ônibus no centro de Belo Horizonte, há alguns anos. Depois, quando me mudei para Brasília, eu tinha um medo que não fazia sentido aqui, porque há 12 anos Brasília era uma cidade muito segura. Atualmente, o quadro é outro, e, apesar da grande disponibilidade de emprego e dos inúmeros programas sociais de distribuição de renda, a pobreza, a vadiagem e a criminalidade parecem multiplicar-se nas grandes cidades. E nós, cidadãos trabalhadores, nos sentimos cada vez mais acuados. E vivemos a nossa miséria: a do medo. Um real para um cafezinho não seria suficiente para que eu me sentisse segura, nem naquele momento, nem depois, nem agora…

Se a situação permanecer como está, o futuro se apresenta um tanto tenebroso. Mas teimo em ter esperança. As eleições vêm aí e com elas a oportunidade de tentar mudar este quadro, porque, obviamente, algo está muito errado: com tanta disponibilidade de dinheiro para programas sociais, a pobreza, a vadiagem e a criminalidade deveriam estar tendendo a zero. Quem sabe políticas sociais adequadas poderiam nos ajudar a retomar a compaixão esquecida, agredida diariamente pela miséria do medo?

 Publicado também no Crônicas da KBR

2 Responses

  1. 06/27/2014

    […]   Publicado também aqui […]

  2. 11/14/2014

    […] a segurança, como já mencionei na crônica “Um cafezinho”, após quatro anos governados pelo dispensado governador, Brasília é uma cidade insegura. A […]