Entre o dever e o prazer

Creio que já seja do conhecimento de todos os leitores deste site, o quanto aprecio livros que trazem mais conhecimento de nossa história.  No entanto, considero-me bastante criteriosa em minhas escolhas. Já houve livros que tive vontade de comprar, mas dei uma folheada e concluí que não eram diferentes de outras obras que já tinha em casa. Outros livros, apenas pelo título, já me são atraentes. Foi o caso de “A Carne e o Sangue”, de Mary Del Priore, publicado pela Editora Rocco.

 downloadA obra trata do triângulo amoroso entre a Imperatriz D. Leopoldina, nosso Imperador D. Pedro I e a sua Marquesa de Santos. A autora explora o dilema de D. Pedro I entre os prazeres da carne e os deveres de sangue, já que sendo pertencente a uma casa real europeia, não havia como escapar disso.  Assim, D. Pedro seguia, nas palavras dele próprio, “fazendo amor de matrimônio” com a Imperatriz e “amor de devoção” com a amante. Aliás, D. Pedro era totalmente devotado à Domitila e sua família. Exemplo disso é o episódio da morte do pai da Marquesa: D. Pedro não arredou pé do leito do moribundo por dias.

Além de algumas novidades, o mais interessante nesta obra é a abordagem da autora, que escreve como se fosse uma testemunha ocular da vida privada da realeza brasileira, como no trecho:

“Maria da Glória [primogênita de D. Pedro com a Imperatriz] via o sofrimento da mãe. Reagia batendo na Goiás [Duquesa de Goiás, filha de D. Pedro com Domitila], quando a pequena vinha brincar em São Cristóvão. O pai interferiu e teve que ouvir da pequena: que ele não ousasse encostar a mão na rainha de Portugal.”

A autora também tem um olhar interessante sobre a Imperatriz Leopoldina, ao desnudar, com base nas cartas de Sua Alteza Imperial, todo o sofrimento que ela passava com as traições do marido. Pelo livro, conhece-se uma Leopoldina sempre triste, melancólica e solitária, saudosa de sua terra natal e de seus parentes. É possível encontrar na internet algumas referências que talvez ela sofresse de depressão. Talvez. Para Mary Del Priore, “Leopoldina sofria apenas de desilusão”

“Ela amava o marido de amor romântico. E, por esse amor, recebia os piores golpes. Percorria o calvário das esposas infelizes.”

Já o poder da Marquesa de Santos é reafirmado em “A Carne e o Sangue”.  Há uma farta documentação sobre isso e esses documentos aumentaram com a descoberta de 94 cartas inéditas de D. Pedro I para sua amante, esquecidas num museu em Nova Iorque e encontradas por Paulo Rezzutti, autor de “Titília e o Demonão: Cartas Inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos”, obra que já comentei (e recomendo a leitura!). Do nada, num período de sete anos, Domitila chegou ao título de Marquesa, “alcançou” o posto de primeira dama da Imperatriz e ainda conseguiu que suas filhas fossem reconhecidas como legítimas pelo Imperador. Mary Del Priore dá alguns detalhes desses feitos com aquele seu peculiar olhar “íntimo” sobre os fatos.

O Imperador é retratado como gente de carne e osso mesmo. Seu temperamento explosivo e passional, sem deixar de ser amoroso é bem trabalhado no livro. Certo destaque é dado para algumas questões políticas, como as relativas à Independência, às revoltas na Bahia e no Maranhão, à Guerra Cisplatina e às abdicações dos tronos de Portugal e do Brasil. No entanto, Mary Del Priore foca mesmo no dilema vivido por D. Pedro I entre a carne (que era fraca) e o sangue (real). Domitila chegou a pensar que seria a imperatriz depois da morte de D. Leopoldina, mas D. Pedro I despachou-a e se casou com uma princesa europeia. No fim, o sangue falou mais alto. 

Ao terminar a leitura, fiquei comparando D. Pedro I com Henrique VIII. D. Pedro teve uma vida amorosa bem mais agitada do que o rei inglês. Teve apenas um filho homem legítimo, mas sua movimentada vida amorosa não girava em torno da sucessão, ao contrário de Henrique VIII. D. Pedro era realmente o oposto do Rei Henrique: ele legitimava filhos que seriam tidos como ilegítimos, enquanto o inglês fazia o caminho contrário. Trezentos anos os separavam, mas manter o trono continuava uma preocupação comum. É bom ver como a História muda e a humanidade progride. 

O grande trunfo de “A Carne e o Sangue”, a meu ver, é a maneira como a autora nos mostra os fatos, como se tivesse presenciado as cenas e nos contasse episódios curiosos. Essa linguagem quase intimista faz a leitura fluir gostosamente. Considero isso uma raridade, visto que Mary Del Priore é historiadora – a obra poderia ter uma pegada mais técnica, o que tornaria a leitura chata. Definitivamente, não é o caso. Recomendo!