Tudo por um herdeiro

O livro “As seis mulheres de Henrique VIII”, de Antonia Fraser, publicado pela Editora BestBolso é uma leitura interessante e esclarecedora. Interessante porque inova ao focar nas seis mulheres que se casaram com o Rei da Inglaterra, fundador da Igreja Anglicana. Esclarecedora porque conta detalhes da época e do pensamento predominante, numa linguagem acessível e agradável.

download (3) Ainda me recordo das aulas de História que tive no Colégio Municipal Marconi (no final dos anos 80), nas quais aprendi que a Inglaterra rompeu com o Vaticano em razão do desejo do Rei Henrique VIII se divorciar da Rainha Catarina de Aragão para se casar com Ana Bolena. Ora, no século XVI era bastante comum que os nobres mantivessem amantes, mas seu casamento era sagrado. Principalmente o casamento de reis, que geralmente se casavam com princesas de outros países, motivados por razões de Estado. E Catarina era simplesmente a filha de Isabella de Castela e Fernando de Aragão, reis do poderosíssimo império espanhol. Acontece que juntamente com a paixão do rei Henrique por Ana Bolena, havia a urgente necessidade que este tivesse filhos homens, com o propósito de garantir o trono inglês ao tronco dos Tudor. Infelizmente, Catarina teve abortos, príncipes morreram com dias de vida e no final, vingou apenas uma princesa, que viria a ser a Rainha Maria I da Inglaterra (ou Bloody Mary). Sendo mulher, se casaria e o marido é que assumiria o Reino. Isso significava entregar a Inglaterra a estrangeiros. Essa foi a principal razão que fez Henrique VIII se casar tantas vezes: ter filhos homens.

 O livro tem como foco as mulheres, mas é impossível dissociá-las do rei. Ainda assim, a autora dá todo o destaque a elas, seus sentimentos e seus dramas. Elas foram descritas dentro de alguns estereótipos, como as cartas de um tarô. Dessa forma, Catarina de Aragão é a Esposa Traída. Morreu doente, depois de lutar contra o divórcio com muita dignidade. É amada pelo povo inglês e em seu túmulo não faltam flores frescas. Ana Bolena é A Tentadora. Não aceitou ser amante do rei, tanto fez até se casar com ele. Um casamento nada tranquilo, cheio de brigas por causa de religião (Ana Bolena admirava Martinho Lutero). Não pariu os filhos homens que o rei desejava. Desse casamento, nasceu Elizabeth (a rainha Elizabeth I da Inglaterra). Ana Bolena morreu decapitada, acusada de adultério, incesto e traição, ainda que tenha vivido sem trair o rei, muito menos com seu próprio irmão. A terceira esposa, Jane Seymour é a Boa Mulher, aquela que foi considerada pelo rei como a verdadeira rainha, pelo simples fato de ter dado à luz seu único filho homem que sobreviveu à infância, chegando a ser coroado Rei Eduardo VI da Inglaterra. Morreu dias depois do parto, de febre puerperal. Após um período de luto e ainda esperançoso de ter mais filhos homens, Henrique casou-se com Ana de Cleves, herdeira de um ducado germânico – A Irmã Feia de nosso tarô. Mas o rei achou-a feia, não gostou dela, o casamento sequer chegou a ser consumado. E ela, humildemente, aceitou divorciar-se e viveu na Inglaterra até sua morte por causas naturais, como a “boa irmã” de Henrique VIII. Nisso, ele já estava apaixonado por Catarina Howard, A Moça Má. Essa traía o rei sem a menor discrição, apesar do amor e da paixão que ele lhe devotava. Morreu como sua prima Ana Bolena: decapitada, acusada de adultério e traição. Depois de tudo isso, qual princesa queria se casar com um rei que se desfazia tão facilmente de suas esposas (à exceção de Jane Seymour) ao se apaixonar por suas damas de companhia (Ana Bolena, Jane Seymour e Catarina Howard eram damas de companhia de suas antecessoras)? Nenhuma, apesar do poder da Inglaterra. Restou, então, a Henrique VIII casar-se com uma viúva, Catarina Parr, A Figura de Mãe. Henrique era o terceiro marido de Catarina Parr, que cuidou dele nos últimos anos, com carinho e desvelo. Ganhou o amor dos três filhos do rei: Maria, Elizabeth e Eduardo, e ainda reconciliou as duas filhas com o pai, recolocando-as na linha de sucessão do trono inglês. E por pouco não foi acusada de traição, por desrespeito à Igreja Anglicana. Mas sua inteligência e perspicácia impediram sua condenação. Morreu após dar à luz sua filha Maria, fruto de seu quarto casamento, com seu antigo amor, Thomas Seymour (irmão de Jane Seymour).

 É evidente que se do casamento com Catarina de Aragão tivessem nascido (e vingado) filhos homens, Henrique VIII não teria tido uma vida amorosa tão agitada e, porque não dizer, conturbada. O contexto da época e o pensamento predominante de que as mulheres eram frágeis e incapazes chocam um pouco nos dias de hoje. Principalmente se dirigimos tais adjetivos a Catarina de Aragão, cultíssima, inteligentíssima e altiva, muito bem preparada para exercer o papel de rainha; a Ana Bolena, também muitíssimo inteligente, conhecedora de dogmas e conceitos protestantes da época, figura central na reforma religiosa inglesa; e a Catarina Parr, que escapou de ser decapitada ao admitir que seus escritos eram resultado de seu pouco conhecimento e que, por isso, ela precisava do rei para guiá-la pela vida. Uma jogada perspicaz, mas é triste constatarmos que isso foi necessário para garantir a sobrevivência de uma rainha. Ainda bem que os tempos mudaram bastante. Certamente, eu teria morrido jovem, decapitada. Isto é, se me fosse dada a chance de estudar…

Aos leigos apreciadores de história, a obra “As seis mulheres de Henrique VIII” é recomendadíssima. Suas quase 600 páginas prendem facilmente a atenção e o interesse. A tradução apresenta algumas falhas que não comprometem nem o conteúdo, nem a estética da autora. A história em si é bem movimentada, quase surreal e até poucas décadas atrás ainda seria considerada escandalosa. Não à toa é tema de filmes e seriado hollywoodianos. As histórias destas seis mulheres é, em si, o enredo de um romance.