O Brasil-purgatório

Os_Excluidos_do_ReinoQuem vê o Brasil hoje, a sexta economia do mundo, celebridades internacionais passando férias em nossas praias, todos querendo vir para cá, conhecer nosso país, nossa gente, não imagina que até há 200 anos atrás era o contrário: ninguém queria vir. Mesmo assim veio muita gente para as terras tupiniquins – entre 1534 e 1820 – pagar por crimes cometidos em terras lusitanas ou pagar as penitências prescritas pelo Santo Ofício. É sobre isso que trata o livro “Os Excluídos do Reino”, de Geraldo Pieroni, editado pela Editora UnB.

A obra é resultado da tese de doutorado do autor. É um livro quase investigativo, pois foi feita uma pesquisa bastante aprofundada sobre o degredo para o Brasil, com ênfase às penas dadas pela Inquisição. Durante este período, o Brasil era considerado um purgatório para as pessoas indesejadas da sociedade portuguesa e era a possessão d’além mar preferida por Portugal para o envio de criminosos.

O purgatório, na concepção católica, é o local para a reparação dos pecados, intermediário entre a glória celestial e o fogo do inferno. Durante o período inquisitorial, o nativo brasileiro era identificado com o demônio, a desonestidade e sensualidade – pecados gravíssimos para o Santo Ofício. Além disso, como uma terra recém-descoberta e abundante, o Brasil carecia de infra-estrutura mínima, o que o tornava indesejado pelos portugueses.  Ao mesmo tempo, as políticas governamentais privilegiavam o degredo para a Terra Brasilis, como conveniente forma de ocupar o território e resguardar suas fronteiras.

Mas qual era o perfil dos banidos pela Inquisição? Era bastante variado: cristãos-novos, bígamos, sodomitas, padres sedutores, feiticeiros, visionários, blasfemadores e impostores. Era difícil escapar do Santo Ofício: os juízes inquisitoriais utilizavam a denúncia recíproca entre os prisioneiros e reinava o medo, a desconfiança e a delação. Geralmente, os acusadores eram parentes das vítimas, também investigados ou já condenados pelo Santo Ofício. A possibilidade de defesa era nula e, na falta de provas contra um acusado, ele recebia penas espirituais que consistiam, geralmente, de participar de missas e confissões. Importante ressaltar que desde os tempos mais remotos do catolicismo, a condição necessária à salvação é o arrependimento dos pecados e, durante a Idade Média, a justiça de Deus e a justiça dos homens eram inseparáveis.

Poucos foram os degredos para toda a vida. A maioria das penas de degredo era pelo período de cinco anos e ainda havia a possibilidade de comutação da pena e obtenção de perdão. Não raramente, muitos degredados tinham a pena comutada alegando condições precárias de saúde, velhice, “donzelice”.

A leitura desse livro reforçou minha impressão a respeito da poesia satírica de Gregório de Matos (o Boca do Inferno), que mencionava alguns desses “crimes” em vários de seus poemas, como já comentei em texto anterior. Mas verdade seja dita, a maioria dos banidos pela Inquisição eram pessoas de bem e, de acordo com o pensamento atual, certamente parecem hoje que foram penalizadas injustamente.

“Os Excluídos do Reino” é um ótimo livro, resultado de uma exaustiva e cuidadosa pesquisa. Lamento apenas a grande quantidade de erros de português e ortografia que encontrei durante a leitura, o que demonstra a falta de cuidado da editora na revisão (ou falta de revisão) de suas obras.

De qualquer forma, meu entendimento é que conhecer nosso passado, nossa história, ajuda a compreender o presente. Para mim, a política portuguesa de banir a escória de sua sociedade para o Brasil, especialmente os criminosos metropolitanos, condenados pela justiça secular, tem consequências até hoje. Por exemplo, os estados brasileiros que mais receberam degredados portugueses foram Santa Catarina, Pará e Maranhão. Isso explica algumas coisas, não?