Politicamente incorreto

download (6)Sempre achei que gostava da poesia satírica de Gregório de Matos. Depois de ler o livro “Gregório de Matos: Antologia – os melhores poemas do ‘Boca do Inferno’, o primeiro poeta maldito brasileiro”, publicado pela L&PM Pocket e com seleção e notas de Higino Barros, descobri que não conhecia quase nada da sátira do Boca do Inferno.
Gregório de Matos e Guerra nasceu em 1636, em Salvador, quando esta era a capital do Vice-Reino do Brasil. Filho de senhor de engenho, pertencia à alta elite colonial e formou-se em Cânones – é importante lembrar que nesta época a Igreja governava o mundo. E isso explica porque Gregório de Matos demorou tanto tempo para ser deportado para a África (1694) e não sofreu as duras penas da Inquisição. Foi o primeiro poeta brasileiro que se tem notícia e sua poesia é peculiar: além da poesia lírica, em que exalta o amor, Gregório de Matos é também autor de uma poesia satírica de escandalizar até mesmo no século XXI! Em minha inocência, pensava que a poesia mais picante de Gregório de Matos fosse aquela em que ele escreveu a uma freira que o chamou de pica-flor:

“Se Pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
Se no nome, que me dais,
Meteis a flor, que guardais,
No passarinho melhor!”

Seu alvo preferido era o clero. Não tinha papas na língua para chamar padres e até seus superiores de sodomitas e ladrões. Também denunciava aqueles que não cumpriam o voto de castidade:

“Enfim papagaio humano te perdeste,
Ou porque enfim darias nos cachopos,
Ou porque em culis mundi te meteste.”

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“Com palavras dissolutas
Me concluís na verdade,
Que as lidas todas de um Frade
São freiras, sermões e p*tas”

Outro alvo do poeta era o governo:

“A cada canto um grande conselheiro
Que nos quer governar cabana, e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.”

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“Provo a conjetura já
Prontamente como um brinco
Bahia tem letras cinco
Que são BAHIA
Logo ninguém me dirá
Que dous ff chega a ter
Pois nenhum contém sequer,
Salvo se em boa verdade
São os ff da cidade
Um furtar, outro f*der”

Produzia também poemas que satirizavam mulheres. Falava das flatulências, do odor do suor e até mesmo reclamava das menstruações das mulheres de seu desejo. Pelo visto, ele andava muito com senhoras de duvidosa reputação, pois chamava a quase todas de p*tas.

“Vá-se o mês, e venha o dia,
Em que eu te vá entupir
Essas cruéis lancetadas
Com lanceta mais sutil.
Deixa já de ensanguentar-te
Porque os pecados que eu fiz,
Não é bem, que pague em sangue
O teu pássaro por mim.”

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“Que têm os menstros comigo?”


Mas o mais interessante é que por meio dos poemas de Gregório de Matos é possível saber um pouco sobre a época. Ele descreve alguns costumes, as cidades, os mercados, a vida escolástica do longínquo século XVII. Chamou-me atenção sua descrição sobre a confusão do entrudo. O entrudo corresponde ao nosso atual carnaval, mas não era repleto de festas e danças. As pessoas brincavam o entrudo jogando água, farinha, comida umas nas outras. Realmente, era uma confusão!

“Não perdoar arroz, nem cuscuz quente,
Despejar pratos e alimpar tigelas,
Estas as festas são do Santo Entrudo.”

Surpresa e, porque não dizer, escandalizada com alguns poemas que me deparei li alguns versos para meu marido, que concluiu que eu estava a ler pornografia… Mas não podemos nos esquecer dos poemas em que Gregório de Matos denunciava os abusos dos governantes numa época em que “democracia” sequer existia. Para nosso desespero, é possível constatar que certos abusos não mudaram muito daquela época para agora…Politicamente incorreto, desbocado, imoral, irônico certamente são as características que renderam ao primeiro poeta brasileiro a alcunha de “Boca do Inferno”. Fosse no século XXI, ele já teria sido julgado e muito provavelmente condenado por danos morais… Em tempo: apesar do susto pornográfico, sigo gostando da sátira de Gregório de Matos.

1 Response

  1. 07/27/2014

    […] que mencionava alguns desses “crimes” em vários de seus poemas, como já comentei em texto anterior. Mas verdade seja dita, a maioria dos banidos pela Inquisição eram pessoas de bem e, de acordo […]