Cartas alheias

Algumas pessoas sugeriram-me transformar a série “Cartas de Helena” em livro. Talvez… Pode ser que dê um bom romance epistolar.  Acontece que preciso escrever mais e mais cartas e por essa razão, penso que preciso ler mais e mais textos deste gênero, como forma de aprimorar minha série. Foi com esse objetivo que iniciei a agradável e, de certa forma, surpreendente leitura do livro “A correspondência de Fradique Mendes”, de Eça de Queiroz, publicado pela editora L&PM Pocket.
download (10)Eça de Queiroz é um de meus autores favoritos. Suas obras primas, “O crime do Padre Amaro” e “O primo Basílio” são leituras obrigatórias para estudantes do ensino médio. Cresci com o privilégio de ter em casa estes dois romances, que já li mais de uma vez.  Assim como Machado de Assis, Eça de Queiroz gostava de criticar a sociedade em que vivia em seus romances. Além de escritor, foi cônsul de Portugal em vários países e podemos dizer que foi um legítimo representante do século XIX. “A correspondência de Fradique Mendes” é uma obra que retrata muitíssimo bem o que isso significa.O livro é composto por duas partes: a primeira constitui “Memórias e Notas” e a segunda são “As cartas” propriamente ditas. Antes, porém, Fábio Bortolazzo Pinto, mestre em literatura brasileira pela UFRGS faz uma breve, mas interessante introdução sobre a obra e revela-nos que Carlos Fradique Mendes jamais existiu: foi uma personagem criada por Eça de Queiroz e seus amigos do grupo Cenáculo, que utilizavam este nome como pseudônimo para poemas e outros textos publicados em jornais de Portugal. O trabalho do grupo foi tão bem feito que eles, conhecidos em Portugal, citavam Fradique Mendes em rodas de conversas e as pessoas em geral tinham plena certeza da existência deste poeta, escritor e cultíssimo homem. “Memórias e Notas” é baseado nisso. Eça de Queiroz conta como “conheceu” Fradique e descreve em ricos detalhes todas as vezes que se “encontrou” com ele. Nessas ocasiões detalhadas, Eça inseriu suas ideias filosóficas e de seu grupo, o que faz deste livro uma boa fonte de aprendizado sobre a época. “As cartas” também seguem esta mesma linha, além de criticar abertamente a sociedade da época, com seus preconceitos e costumes. A França é sempre lembrada, citada e exaltada em todo o livro. É importante registrar que Eça de Queiroz foi um português com alma de francês, como ele mesmo dizia, exceto pela tristeza lírica que sentia (típica de lusitanos) e por gostar de fado e de um bom bacalhau acebolado. Era fã incontestável de Victor Hugo e das ideias modernistas nascidas na França.

Duas cartas em especial me chamaram a atenção: a carta VI escrita a Ramalho Ortigão – um dos amigos do Cenáculo – e a carta XVII, assinada pelo próprio Eça de Queiroz. A carta VI conta uma história hilária de adultério. Inclusive, inspirou-me a escrever um conto que figura entre meus textos. A carta XVII é a última do livro e o próprio Eça a escreve, terminando um relacionamento com Clara. É uma carta belíssima, elegante e muito, muito respeitosa e, porque não dizer, amorosa. Mesmo assim não gostaria de terminar nenhum relacionamento desta forma, pior ainda, se considerados os upgrades nos meios de comunicação.

Outro primor deste livro é o vocabulário. Palavras que não se usam mais, com as devidas notas de rodapé explicando seu significado, já que muitas delas nunca nem ouvimos falar. Foi no livro “A correspondência de Fradique Mendes” que encontrei algumas boas palavras que utilizei em “Cartas de Helena”, tais como “morgadinho” e “facunda”. Outras palavras ainda “surgirão” na série.

Assim como minha Helena, Fradique Mendes é um personagem inventado. Assim como aconteceu com Carlos Fradique Mendes, algumas pessoas acreditavam que a Maria Helena Gonçalves que “escreve” as cartas existiu. Para mim, que sou uma escritora iniciante, amadora, que ainda tenho muito a aprender foi uma deliciosa surpresa tais coincidências. Quem sabe um dia não publico um livro assim?