O velhinho de barbas brancas

o velhinho de barbas brancasAdelaide gostava de ouvir as histórias de seu avô. Ainda podia lembrar-se bem do tempo em que era criança, quando sentava-se no colo do velho que a acomodava com cuidado nas pernas finas e ficava a ouvir, admirada, as experiências e aventuras tão diferentes e emocionantes que seu avô Juvenal tinha vivido.

Vovô Juvenal, como Adelaide o chamava, nasceu em 1880. Portanto, já havia nascido livre e não cativo como sua mãe ainda vivia. Teve sorte de ter nascido em uma casa enorme, um verdadeiro palácio, e os senhores serem tão bondosos. Quando tinha cinco anos, gostava de brincar no quintal, enquanto sua mãe cuidava dos afazeres da casa. Sempre que os senhores iam passar o verão lá, o pequeno Juvenal ficava maravilhado com as senhoras tão bondosas que o tratavam tão bem pois, apesar de ser filho de uma das escravas da família, era-lhe permitido brincar com as crianças da casa. Mas ele admirava mesmo era o patriarca da família, um ancião de barbas brancas que aparentava ser um homem sábio. Sua mãe, muito zelosa com o menino e com seus senhores, fazia de tudo para que Juvenal não importunasse a família, mas a criança, com toda sua espontaneidade e curiosidade sempre escapava e dava um jeitinho de ficar brincando em silêncio perto daquele senhor que, para o pequeno Juvenal, era como se fosse o próprio Deus. Seu jeito altivo, porém discreto, sua fala calma, seu olhar bondoso e suas grandes barbas brancas davam a Juvenal uma agradável sensação de bem-estar. Enquanto o velho lia à sombra da mangueira, Juvenal ficava por perto, ora sentadinho em silêncio, distraindo-se com algum raminho, formigas e outros insetos, ora deitado à sombra árvore, apenas desfrutando daquela presença que lhe fazia tão bem.

Em um desses dias de silenciosa admiração e paz de espírito, o ancião interrompeu sua leitura e perguntou a Juvenal:

– Meu jovem, como te chamas?

– Juvenal, meu bom senhor.

– És filho de Marvina, não?

– Sim, senhor.

– Quantos anos tens?

– Seis! Minha mãe diz que já sou um rapaz. – Nesta hora, Juvenal percebeu que o velhinho olhara para sua mãe e fizera um gesto que estava tudo bem.

– Sabes o que é isto? – E apontou para o livro.

– Mamãe disse que é um livro e que é importante porque só pessoas como o senhor sabem usar…

O velhinho sorriu. Aproximou-se daquele garotinho negro sujo, mas interessante e disse-lhe:

– Juvenal, queres aprender a “usar” um livro?

Adelaide lembrava-se da emoção com que o avô contava a recordação deste dia. Seus olhos enchiam-se de lágrimas, pois nunca na vida tivera sido tratado com tanta distinção por alguém.

– Sim, meu senhor, eu quero!

– Então vou ensinar-te a ler. Vem comigo.

E o pequeno Juvenal seguiu o ancião de barbas brancas. No caminho, viu sua mãe com uma cara nada boa. Abaixou a cabeça, mas continuou a seguir firme aquele sábio velhinho que iria ensiná-lo a ler. O velhinho colocou o pequeno Juvenal sentado em uma cadeira deliciosamente macia. Adelaide lembrava-se de seu avô descrevendo aquela cadeira como a mais confortável que ele já havia sentado em toda a sua vida! E assim, durante aquele verão de 1887, todas as manhãs, o velhinho ensinava a Juvenal o bê-á-bá. E um dia, disse-lhe:

– Juvenal, és um menino deveras esperto! Toma este livro, é teu.

Adelaide ainda tinha o livro que seu avô Juvenal ganhara pouco antes de completar sete anos de idade. Estava muito amarelado, velho mesmo, mas era uma relíquia da família.

Depois deste verão, o velhinho, muito adoentado, viajou para tratar de sua saúde. Demorou para voltar e Juvenal teve medo de nunca mais vê-lo. Sua mãe fora libertada antes da Lei Áurea, mas quis permanecer junto de seus senhores, que a aceitaram e pagavam por seus serviços. Juvenal, ainda criança, ficava junto dela, mas ela queria que ele fosse trabalhar nas roças vizinhas. E então Juvenal começou a trabalhar e a ganhar alguns réis para ajudar sua mãe.

Adelaide abriu o livro e viu a foto daquele sábio ancião, com suas barbas brancas e densas. Era uma foto velha, amarelada, mas ainda bastante legível, com aquele rosto bondoso que lhe era tão familiar. Aos 84 anos, Adelaide convivia com as lembranças de sua infância e juventude. Apesar de ser negra, nunca trabalhou como doméstica: era o orgulho de seu avô, pois ensinava crianças pobres a ler e escrever.

Juvenal deve ter visto o velhinho não mais que duas vezes depois do retorno da viagem, pois seus afazeres na roça o impediram de passar mais tempo ao lado daquele bondoso senhor, quando este passava alguns dias em Petrópolis, a sua cidade. Pior foi o que aconteceu depois: o velhinho de barbas brancas, Sua Alteza Imperial, o Imperador Dom Pedro II, juntamente com sua família, foi banido do Brasil. Juvenal sentia uma profunda tristeza e sempre que contava esse episódio para Adelaide, lágrimas corriam pela sua face escura e enrugada. Não pôde despedir-se daquele sábio ancião que o ensinara a ler e transformara a sua vida e as de seus descendentes.

* Nota da autora: Esta é uma obra de ficção. Não há qualquer registro histórico de que o Imperador Dom Pedro II tivesse, pessoalmente, ensinado alguma criança a ler. É apenas uma homenagem ao homem sábio, poeta e amante dos livros que foi o Imperador.