Antes tarde do que nunca

Antes tarde do que nunca                  
 
Naquele sábado ensolarado, que mais parecia cheio de nuvens negras, Donana cortou o bolo em fatias finas e embalou pedaço a pedaço com guardanapos de papel, colocou as torradas no saquinho da padaria e acomodou tudo na sacola da quitanda da esquina. Pegou sua bolsa, guardou o dinheiro da passagem no bolso da calça jeans e foi para o ponto de ônibus. Podia ver outras mulheres como ela, mas certamente nenhuma delas ali, esperando o ônibus, tinha o mesmo destino de Donana. 

            O ônibus passou um pouco cheio e uma jovem mulher, educada e com um olhar triste, cedeu seu lugar para aquela senhora quase obesa, já perto de seus sessenta anos, de respiração ofegante. Donana agradeceu a gentileza e ofereceu-se para levar a sacola da moça. Reconheceram-se num olhar. Ambas estavam a caminho daquele inferno na Terra, cumprir com suas obrigações de mulheres que amavam.

            Desceram do ônibus conversando. A mulher parecia não ter mais que quarenta anos, mas Donana descobriu que ela tinha apenas vinte e cinco. Como Donana, sua vida era sofrida. Trabalhava como empregada doméstica num elegante bairro da cidade e seu salário sustentava a única filha, com muita dificuldade. “Sorte que tem apenas um filho. Eu tive quatro e criei-os praticamente sozinha com meu salário de faxineira em condomínios.” A moça concordou, dizendo que já havia decidido não ter mais filhos. Queria poder dar um pouco mais de conforto à sua filha, queria que ela estudasse, fizesse faculdade. E sabia muito bem que não poderia contar com o pai dela.

            A fila no portão já estava grande. Uma a uma as mulheres entravam, passavam pelo detector de metais e esperavam em pé em uma sala. Quando entravam, sozinhas, suas sacolas com lanches eram revistadas, enquanto despiam-se. Nuas, eram apalpadas por uma agente, que verificava se não escondiam algo embaixo dos seios e banhas. Depois, eram colocadas em pé com as pernas abertas sobre um espelho de aumento e a agente conferia se não levavam drogas escondidas na vagina. Deprimente. Para Donana, essa era a pior parte do dia quando visitava o filho preso. Chorava todas as vezes e sempre perguntava se era mesmo necessário, já que ela era uma senhora honesta. A agente, um brutamonte que mais parecia um homem, apenas respondia secamente: “Muita gente parece ser e não é.” Donana vestia-se o mais rápido que conseguia, já que não era muito ágil por causa da gordura. Lavava o rosto, secava as lágrimas e ficava esperando em outra sala, com outras mulheres que já haviam sido revistadas. 
           
          Quando a sirene soava, adentrava o presídio. Lá estava ele, mais magro e mais triste. Depois de abraçar a mãe, perguntou pela esposa e Donana restringiu-se a dizer: “Ficou em casa, cuidando do Juninho. Passou bem esses dias?” “Sim”, respondeu o filho, com tristeza no olhar. Donana sabia que ele sentia falta da mulher, que só o visitara uma vez durante aqueles dois anos em que estava preso. Donana não tinha coragem de dizer-lhe que a mulher saía todas as noites e voltava bêbada, de madrugada. Passava o dia dormindo e quem cuidava do Juninho, enquanto Donana trabalhava ou visitava o filho, era a neta mais velha, que tinha dezesseis anos. “Trouxe bolo e torradas, filho. Ah! Trouxe também seu remédio.” “Que bom, mãe!”, esboçou um sorriso nos lábios. “Mãe, diga a Paula para vir na próxima visita. Por favor, fique com Juninho.” A mãe fez que sim com a cabeça e baixou os olhos. Já pedira mil vezes à nora para ir visitar o filho, mas a vagabunda, além de nunca ir, sequer perguntava sobre ele. Donana sofria em silêncio. Enquanto o filho comia o pão que o diabo amassou, preso, sem liberdade para ir ao banheiro, a nora saracoteava todas as noites. Não a expulsava de casa, porque não queria se afastar do neto, a quem mais amava no mundo. Sabia que a criança sofreria, porque o amor de mãe que recebia era todo de Donana. 

          Donana contou as novidades ao filho, recomendou-lhe cuidados com a saúde. O filho contou-lhe que estava trabalhando e deu-lhe um pouco de dinheiro que ganhara como aprendiz de marceneiro. “Para ajudar nas despesas com o Juninho”, disse. A sirene soou. Donana abraçou e beijou muito o filho. Era sempre triste a hora da despedida, mas nesse dia Donana sentiu um misto de tristeza e felicidade. Saber que o filho podia sair da prisão, dali a cinco anos, com a profissão de marceneiro a enchia de orgulho. Assim, não precisaria mais ser laranja de traficantes e acabar preso, condenado por tráfico de drogas. Seria um trabalhador honesto, largaria aquela mulher à toa com quem vivia e criaria o filho. Quem sabe não arrumasse uma moça direita, trabalhadora e honesta e se casasse de novo? Sim, havia esperança de dias melhores. Antes tarde do que nunca!

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          No condomínio onde trabalhava, Donana não tirava os olhos do relógio. Estava ansiosa como poucas vezes estivera em sua vida. Há alguns dias, ela havia conversado com o síndico do condomínio e teve permissão para levar Juninho para o trabalho e ser dispensada após o almoço naquela quinta-feira. À tarde iria ao presídio pela última vez. Sim, aquelas eram as últimas horas que seu filho Magno ficaria preso. Magno esteve preso por cinco anos, conseguiu ter a pena reduzida e agora voltaria para casa e trabalharia como marceneiro. Ah! Parecia um sonho ter o filho de volta em casa!

          Quando o relógio marcou uma da tarde, Donana foi trocar-se. Olhou Juninho. Estava com sete anos e começando a ler. Não se lembrava mais do pai, pois quando este foi preso, Juninho contava apenas com dois. Como estava crescido! Paula, a mãe de Juninho, parecia pouco interessada que Magno voltasse para casa. De qualquer forma, Donana pediu-lhe que fosse até o presídio, para que todos o recebessem assim que saísse de lá.

          Trocou-se o mais rápido que pôde. Pegou Juninho pela mão e foram para o ponto de ônibus. O primeiro ônibus estava vazio, mas o cobrador brigou com ela por Juninho passar por baixo da roleta. Donana pensou: “Nada vai estragar meu dia hoje.” Mandou Juninho voltar e pagou a passagem. Não seriam meros dois reais que atrapalhariam sua felicidade. O segundo ônibus estava cheio, mas foi esvaziando à medida que se afastava da cidade. Juninho nunca tinha ido por aquelas bandas. Não tirava os olhos da rua, mas como a viagem foi longa e ele havia acordado cedo, adormeceu. Donana acordou-o quando estavam chegando.

          Ao descerem do ônibus, Donana abriu a bolsa e tirou um embrulho de dentro: 

          – Juninho, meu filho, dê este presente ao seu pai.

          – É o aniversário dele? – indagou Juninho. 

          – Não, mas é como se fosse… – respondeu Donana com um sorriso nos lábios. 

          Aproximaram-se do presídio. Naquele dia, não havia filas de mulheres para serem revistadas. O guarda apenas perguntou o que ela queria e ela disse-lhe que fora esperar o filho, que estaria em liberdade. 

          – Magno S. Ramos – apressou-se em dizer Donana. 

          – Vó, a mamãe veio! – disse Juninho, indo ao encontro da mãe. Paula aparecera. Nos cinco anos que Magno ficou preso, ela visitou-lhe não mais que três vezes, mas naquele dia, fora esperá-lo. 

          Não demorou muito e ele apareceu na porta do presídio. Estava magro, mas tinha o semblante feliz. Trazia uma sacola com alguns poucos pertences. Correu ao encontro das mulheres e da criança. Abraçou a mãe com ternura, pegou o filho no colo e beijou a esposa. Estava livre, finalmente! Juninho, timidamente, deu-lhe o embrulho com o presente. Magno abriu: 

          – Adoro camisetas com essa cor! Obrigado, filhão! – e beijou a mãe candidamente. Foram para o ponto de ônibus. Magno quis saber por que Mariana, sua sobrinha, não tinha ido também. 

          – Ela começou um estágio segunda-feira. Não quis pedir para sair cedo já na primeira semana. Oh, Magno! Estou tão orgulhosa dela!

          Magno sorriu. Olhou para Paula:      
     
          – Achei que você não viria… – Paula apenas retribuiu-lhe o sorriso.

          Ao chegarem, viram a casa enfeitada com balões, cartazes de boas-vindas e bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro sobre a mesa. Donana havia tão somente preparado o bolo na noite anterior. Paula surpreendera a todos: enfeitou a casa, comprou refrigerante e cerveja. Magno sentiu-se acolhido pela família. Estava feliz de retornar ao lar. 

          – Amanhã mesmo você vai à marcenaria do seu Divino, Magno. – disse Donana, enquanto partia o bolo. – Falei com ele que você ia voltar e tinha aprendido marcenaria. Ele disse que você pode ir trabalhar lá. Não é uma boa notícia?

          E ficaram conversando e fazendo planos até tarde. No dia seguinte, Donana saiu cedo para trabalhar. Seria mais um dia de ansiedade: não via a hora de voltar para casa e saber como foi o primeiro dia de trabalho do filho. Mas qual não foi sua surpresa ao ligar para casa, como costumava fazer, para saber se Juninho havia feito a lição: Magno atendeu ao telefone.

          – Filho, você não foi à marcenaria do seu Divino?

          – Hoje não deu, mãe. Tem muita gente aqui no bairro que eu quero re-encontrar! Amanhã eu vou.

          Donana não gostou do que ouviu, mas entendeu que o filho queria rever os amigos. Amigos estes que Donana não gostava muito, mas…

          No sábado, nada fez Magno sair da cama cedo. Ele e Paula saíram sexta-feira à noite e voltaram somente quando o dia estava amanhecendo. Magno levantou às duas da tarde, almoçou e voltou para a cama com Paula. Donana achou melhor sair com Juninho e Mariana. Quando voltaram, por volta de oito horas da noite, Paula e Magno se preparavam para sair. Donana lanchou com os netos e foram dormir. Mas Donana não conseguiu pregar o olho. O filho estava, novamente, trocando o dia pela noite…

          E assim passaram-se semanas. Donana perguntava ao filho todos os dias se ele havia procurado emprego. Seu Divino não queria mais contratá-lo e estava difícil arranjar trabalho. Pudera! O filho saía tarde à procura de emprego. Até que um dia, Magno chegou a casa contando que havia conseguido emprego numa indústria. E que trabalharia no turno da noite. Donana não gostou, mas sabia que grandes indústrias tinham turnos de trabalho. O salário não era muito, mas davam vale-transporte e uma cesta básica todos os meses. No primeiro mês de trabalho, Magno comprou uma televisão nova e um aparelho de som. Disse que havia ganhado bônus da empresa. Donana sentia-se feliz em ver sua casa e sua vida melhorarem.

          Todos os dias, Magno saía para o trabalho às seis da tarde, antes de Donana voltar para casa. Estranhamente, Paula saía de casa às oito horas da noite sem dar maiores explicações. Donana ficava com Juninho e ensinava-lhe a lição de casa. “Paula não dá nem essa atenção ao menino.” – pensava Donana, entristecida. Mariana também fazia sua lição, de forma que às dez e meia da noite todos iam dormir. 

          Mas numa noite quente de segunda-feira, Donana percebeu um movimento estranho na rua. Foi até a janela e pôde ver luzes de carros da polícia. “Graças a Deus, Magno está no trabalho e hoje Paula ficou em casa…” Mas assustou-se ao ouvir baterem no portão. Era a polícia:

          – É aqui que mora Magno S. Ramos?

          – É sim, senhor, mas ele está no trabalho.

          – Que trabalho? – indagou o policial.

          – Ele trabalha em uma indústria… – Donana não soube dizer mais nada. De repente, notou que seu filho não mencionara qualquer detalhe de seu emprego, não dissera exatamente em que trabalhava e sequer dera-lhe o nome da tal indústria, onde supostamente trabalhava. Donana não teve coragem de encarar o policial.

          – Lá vem o malandro, lá vem o malandro! – ouviu um policial dizer. 

          – Ele está armado! – disse outro. Abaixem-se!

          De repente, ouviu-se um tiro. Donana correu para dentro de casa, gritando para Juninho e Mariana ficarem embaixo da cama e acomodou-se junto a eles. Pôde ouvir Paula gritar e um policial chamá-la de vagabunda. Percebeu tiros dentro de sua casa. Chorava e abraçava os netos, agarrando-os para que não saíssem dali. 

          E Donana viu, de debaixo da cama, o buraco que o tiro fez na parede da sala. Começou um tiroteio. Policiais de dentro de sua casa atirando para fora. E tiros vindos de fora para dentro. Donana chorava desesperada, assim como Mariana e Juninho. Começaram a rezar, clamando a Deus para que aqueles tiros infernais cessassem, para que os policiais fossem embora e todos estivessem sãos e salvos. Não faziam mais ideia de quanto tempo estavam embaixo daquela cama, chorando e rezando, quando os tiros cessaram. Todo o corpo de Donana doía, estava difícil respirar. Esperaram vários minutos antes de saírem de debaixo da cama. 

          Mariana e Juninho saíram primeiro e ajudaram Donana. Mariana correu a preparar água com açúcar para acalmar a avó, que tremia e não conseguia parar de chorar. Mesmo assim, Donana resolveu ir até o portão, que ainda estava aberto e viu que havia muitos mais carros de polícia. Olhou para o chão e viu o filho caído, morto com um tiro no peito.

          – Nãããããoo!!! – gritou e jogou-se desesperada sobre o corpo do filho, ainda quente e suado.

          Um policial tentou afastá-la do corpo inanimado de Magno, mas um sargento mais velho disse para deixá-la chorar o filho morto. Foi quando Donana ouviu de uma das viaturas:

          – Tenente Rodrigues falando. Trocamos tiros com os traficantes do bairro e o chefe do tráfico, Magno S. Ramos, foi morto. Prendemos sua cúmplice, Paula S. Alves.

          Donana mal pôde acreditar nas palavras que ouvia. Naquela noite, ela havia percebido que o filho mentira para ela todo esse tempo. Mas não podia imaginar que ele era o chefe do tráfico de drogas. A dor que sentia era indescritível. Era como se uma faca lhe dilacerasse o peito. Era um misto de desespero e de vergonha. Desespero pelo filho morto, pelo neto pequeno, por toda a vida de luta para educar Magno e seus irmãos. Vergonha por ter sido tão ingênua, por não ter conseguido tornar seu filho um homem de bem, honesto, trabalhador, cumpridor de seus deveres. E não poderia falar dele com o orgulho que vinha falando. E não poderia lembrar-se dele como um homem de bem. E toda aquela dor a fez perceber o quão cruel era aquele mundo de pobreza, ódio e criminalidade.

          E agora, ali estava ela, com o corpo de seu filho nos braços. Seus soluços incessantes tiravam-lhe o ar. Naquele momento, Donana percebeu que seu filho nunca fora laranja de traficantes, como ela havia acreditado. Pegou uma de suas mãos. Não tinha calos. Era uma mão fina. Não era mão de um operário, de um marceneiro, de um trabalhador. Da outra mão ainda pendia uma arma. Donana finalmente reconheceu que seu filho era um malandro, um marginal, um bandido. Antes tarde do que nunca!