A tendência é piorar

A tendência é piorarUma pesquisa sobre a evolução dos países a partir de suas constituições revela a existência de padrões que poderiam ajudar a predizer o momento para introduzir mudanças. O estudo ainda está na fase de revisão por pares para ser publicado em um periódico científico, mas foi revelado pela Scientific American. O resultado em si não surpreende, mas agora existe um estudo com método científico que comprova a observação e as óbvias constatações. Pelo visto, a tendência, pelo menos no Brasil, é piorar.

A metodologia utilizada na pesquisa é interessante. As palavras das constituições de 194 países foram transformadas em algoritmos, e a análise foi feita por computadores. Uma inovação e tanto, porque não depende da interpretação dos textos. Os resultados obtidos a partir da análise computacional, sim, são interpretados por cientistas.

Uma das descobertas é que as emendas às constituições são inseridas de acordo com uma certa sequência e sofrem influência da moral da época. Por exemplo, a determinação do ensino gratuito para todos, parece sempre preceder à obrigatoriedade da educação.

Uma inferência interessante que a pesquisa proporcionou é que “homens adultos, por exemplo, parecem considerar suas próprias proteções antes de pensar nos outros, inclusive naqueles que não conseguem pressionar por seus próprios direitos”, conforme atestou o cientista Alex Rutherford. Aqui no Brasil, já sabemos disso há muito tempo, não é mesmo?

A pesquisa analisa as emendas às constituições, mas essa frase dita pelo Dr. Rutherford nos impele a extrapolações, considerando-se o momento em que vivemos em nosso país.

Para início de conversa, homens adultos dominam praticamente todas as esferas políticas e trabalhistas. Por exemplo, há algum tempo venho contando o número de homens e mulheres em reuniões de trabalho de que participo. Sempre o número de homens é maior do que o de mulheres. Na última reunião em que estive, durante essa semana, éramos duas mulheres e sete homens. E ao final da reunião, ainda levei um “elogio” — que dispenso — de um dos participantes. Toda a minha cadeia de comando é formada por homens: o ministro, o secretário, o subsecretário e o diretor. Na equipe de que faço parte, somos agora sete mulheres e um homem. Percebem?

Com relação à constituição e à legislação brasileiras, vamos nos lembrar de que o Congresso Nacional é dominado por homens (supostamente) adultos. E, ainda por cima, quase todos suspeitos de participarem de esquemas criminosos. Dos 513 deputados federais, apenas 56 são mulheres; no Senado, a proporção é um pouco melhor, mas ainda baixa, do total de 81 senadores, 13 são do sexo feminino.

Assim, fica fácil “compreender” algumas decisões, a começar pela impunidade. Buscam se auto proteger ao “perdoar” o deslize do colega.

Algumas leis de garantia de direitos demoraram tempo demais. Por exemplo, a legislação de direitos trabalhistas para empregados domésticos, que só existe desde 2015! Vale lembrar que a imensa maioria dos empregados domésticos é composta por mulheres negras. Uma realidade completamente distinta da maioria dos homens brancos que dominam as casas legislativas.

Outro assunto complicadíssimo e que diz respeito às mulheres é o direito ao aborto. Sendo a maioria do parlamento composta por homens, não podem ter a menor noção do que significa carregar em seu corpo, sem vontade, um ser que cresce e que resultou de uma relação não consentida — o estupro. Os 18 deputados que compõem a comissão especial para analisar a PEC 181, que proíbe o aborto em todos os casos, incluindo estupro e risco de morte da gestante, votaram a favor desse retrocesso. Somente uma deputada — a única mulher da comissão — votou contra.

Homens brancos e ricos legislam sobre os corpos, sobre a violência que as mulheres sofrem, notadamente as negras e pobres, em quase totalidade das vezes, vinda de homens. As 56 deputadas não serão páreo para reverter a situação se esse for o entendimento majoritário.

A argumentação é que “a dignidade da pessoa humana e a garantia de inviolabilidade do direito à vida” estão sendo respeitados. E a dignidade da mulher que sofreu um estupro? E a inviolabilidade do direito à vida da mulher que vai morrer no parto, ou antes, provavelmente, junto com a criança? As questões filosóficas são complexas, não é um assunto simples ou fácil, mas temos que ter claro que a discussão está entre a dignidade de uma massa de células ou de um feto, e a de uma mulher que, às vezes, sustenta uma família, tem filhos. Quais as consequências físicas e psicológicas que uma gestação indesejada, resultante de uma violência como o estupro, pode produzir numa mulher?

É preciso estar claro que a proibição imposta pela PEC, se aprovada, não acabará com os abortos. Eles continuarão acontecendo, e pode-se até aquecer o mercado clandestino, que atua sem os devidos cuidados médicos, atentando contra a dignidade da mulher e do feto.

Essa coisa de direito é muito estranha: a proibição significa que o cumprimento da norma é obrigatório, e o desrespeito à Lei é crime. Mas permitir, ou seja, dar o direito não significa que todas as mulheres que sofreram estupro vão sair abortando — será facultada a elas essa escolha. Isso me parece o mais importante. Se essa PEC passar, nenhuma mulher terá nem sequer o direito de escolher. Esse é o grande retrocesso.

A sociedade está desenvoluindo. O autoritarismo bate à porta. Repito: a tendência é piorar.