Viemos todos do mesmo barro

Viemos todos do mesmo barroBasta irmos a uma rodoviária ou a um show qualquer ou a uma manifestação na Paulista que veremos a imensa paleta de cores da nossa gente. Mas é na África que se encontram todas, simplesmente todas as definições desses gradientes de cor de pele, conforme mostrou um estudo publicado recentemente na revista científica Science.

A pesquisa foi conduzida por 27 pesquisadores dos Estados Unidos, Etiópia, Tanzânia e Botswana e mostra que, na verdade, viemos todos do mesmo barro: a cor da pele de qualquer pessoa tem a mesmíssima origem. É mais uma evidência contundente de que o racismo é algo que não faz o menor sentido: somos gente e pronto, todos black, todos white, enfim, todos Homo sapiens.

Os pesquisadores descobriram que algumas mutações responsáveis pelo tom de pele mais claro dos europeus têm origem africana. Parece que nosso ancestral mais antigo, o Austrapithecus tinha a pele branca completamente coberta por pelos, que o protegiam dos raios UV. À medida que as outras espécies de primatas humanos surgiram no continente africano e foram perdendo os pelos, tiveram que se adaptar para se proteger da radiação perigosa. Mais tarde, quando os hominídeos migraram para o norte — regiões com menor disponibilidade de luz solar —, tiveram que se adaptar novamente, e a pele clareou de modo a permitir absorção de luz solar suficiente para a síntese de vitamina D.

Evidentemente, tais processos levaram alguns milhares de anos, mas é importante que se diga que essas “mudanças” na cor da pele só foram possíveis porque as variantes genéticas já existiam no genoma. Nada acontece como um passe de mágica.

Ademais, a herança da cor da pele é muito complexa e envolve entre 10 e 20 genes, num universo de 20 mil genes existentes no nosso genoma. O estudo publicado cita apenas quatro desses genes envolvidos com a cor da pele. Mesmo assim, os resultados encontrados são muito interessantes. Verificou-se que variantes de dois genes associados à pele, olhos e cabelos claros — tipo europeu — foram encontradas nas populações de um grupo étnico do sul da África, cuja pele é mais clara. Os pesquisadores sugerem que essas variantes são antigas, surgiram há cerca de 1 milhão de anos, saíram da África e se espalharam pela Europa e Ásia.

O estudo conclui que existe um mecanismo genético muito mais complexo envolvido na pigmentação da pele. Outra conclusão é bem óbvia: características complexas como cor da pele e altura não podem ser usadas para classificar as pessoas.

Um exemplo prático: há cerca de 10 anos, a BBC lançou o projeto “Raízes Brasileiras”, que traçou o perfil genético de algumas celebridades, com exames feitos pelo geneticista brasileiro Sérgio Pena. Um resultado surpreendente foi o do cantor Neguinho da Beija-Flor: 67,1% de seus genes têm origem europeia, 31,5% têm origem africana e 1,4% ameríndia. Já a ginasta Daiane dos Santos foi considerada o protótipo brasileiro, com as proporções mais equilibradas: 39,7% de herança africana, 40,8% europeia e 19,6% ameríndia.

A campeã e encantadora Daiane tem o perfil genético do brasileiro médio — é como somos enquanto povo. Portanto, a lataria que exibimos não quer dizer absolutamente nada. Não é a cor da pele que dita nossas capacidades intelectuais, nem físicas, nem nossas habilidades, muito menos o que somos.

Conheço uma pessoa que me conquistou logo na primeira vez em que nos encontramos: altiva, fala bem e discreta. Em pouco tempo de convivência, confirmei todas essas características e mais a competência, a inteligência e o coração do tamanho do mundo — uma das melhores pessoas que conheço. Apenas um ano mais velha do que eu — conta hoje com 44 anos —, é mãe de quatro filhos e avó de três netinhas fofas. Um detalhe que tem a ver com a pesquisa que mencionei acima: ela e os filhos têm pele negra; as filhas e as netas têm pele branca.

O meio social em que vive e o racismo não permitiram e não permitem que ela saia dali e busque outros caminhos. Mesmo com todas as dificuldades, batalha com dignidade. Mas o que ela, seus filhos e outros brasileiros precisam é de oportunidades verdadeiras. Nenhuma política pública, até hoje, conseguiu proporcionar isso. Não entendo por que é tão difícil…

Tudo isso nos faz ver a tremenda injustiça que é o racismo. Infelizmente, nem todo mundo é capaz de compreender o óbvio, mesmo com tantos estudos biológicos, sociais e antropológicos ao alcance de um clique. O racismo é cruel e só traz consequências nefastas para toda a sociedade.

O conceito de raça é biologicamente inexistente para a espécie Homo sapiens: a Ciência já comprovou este fato desde o início dos anos 2.000, e vem sendo corroborado a cada novo estudo genético e evolutivo. O racismo, portanto, só serve mesmo para gerar desigualdade social, injustiça, dores que nem imagino; é um crime que traz pouquíssimas consequências a quem o comete. Enquanto esse mal perdurar, viveremos em um mundo infeliz, cheio de mazelas que poderiam ser resolvidas com certa facilidade, desde que a humanidade se conscientize de que o importante está muito além da refletância de luz que nossos olhos conseguem enxergar.

Imagem: Candis