Velhos criminosos

Velhos criminososHá alguns dias, tentei escrever sobre eventos históricos que a humanidade não pode esquecer, sob pena de cometer os mesmos erros, com consequências agravadas pelo avanço tecnológico. Parei no terceiro parágrafo quando comecei a abordar o holocausto: nada do que eu escrevia era suficiente para expressar o significado desse trágico, quiçá o mais terrível capítulo da história do mundo. Tive pavor de minhas palavras banalizarem o real significado do holocausto. Não posso fazer isso, pensei. Apaguei e desisti da ideia.

Pois não é que me deparei com uma matéria relatando que, devido à idade avançada — o que lhe rendeu uma demência, com delírios psicóticos e suicidas —, um nazista que atuou em Auschwitz não foi julgado na Alemanha.

É castigo suficiente? Meu instinto responde, veemente, que não.

O infeliz, que atende pelo nome de Hubert Zafke, era enfermeiro e conta com 96 anos. Após a guerra, uma corte polonesa o julgou e o condenou a quatro anos de prisão. Está livre desde 1951. O tribunal alemão tentava julgá-lo pela morte de quase 3.700 pessoas em Auschwitz. Portanto, de 1951 até que a criatura vá desta para o inferno, parece que a vida lhe foi bem boa, pelo menos com liberdade — a mesma liberdade de que foram privados inúmeros inocentes, incluindo crianças e velhos como ele.

Em 2013, o tribunal alemão de Neubrandenburg abriu um processo contra Zafke. O nazista foi interrogado em 2014 e alegou desconhecer o que ocorria em Auschwitz, que apenas tratava os soldados da SS. Foi salvo pelo gongo de seu quase um século de vida. Convém aqui ressaltar que Zafke não é o único a ser salvo pelo tempo. Segundo matéria do Washington Post, dos 30 “suspeitos” acusados pelo Central Office for the Investigation of National Socialist Crimes in Germany, 27 morreram antes do julgamento; apenas dois puderam ser julgados e condenados. Zafke, vivinho da silva, no frigir dos ovos, foi “perdoado”.

A pergunta é inevitável: a idade avançada e as demências que vêm com ela apagam os crimes cometidos? Ou, pelo menos, é fator para um “perdão”? Porque o não julgamento, neste caso, é como se fosse um perdão.

Ainda me lembro do ditador sanguinário Augusto Pinochet, com cara de bom velhinho na TV, sendo levado numa cadeira de rodas. Cara de pau inocente, coração e mente de demônio. Como neste mundo é tudo muito político, foi salvo do julgamento e prisão na Espanha pela intercessão da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher — por sorte, Pinochet se encontrava em solo britânico. Foi declarado portador de doença mentalmente incapacitante e, da mesma forma que o nazista de 2017, sem condições de enfrentar um julgamento e “forçosamente perdoado” pelos crimes cometidos.

Não que seja olho por olho e dente por dente.  A humanidade já superou esse dito; ninguém vai colocar o velho numa câmara de gás, nem Pinochet seria torturado — embora ambos merecessem experimentar seus próprios métodos. Mas uma condenação desses velhos criminosos, ainda que simbólica, significa muito para os parentes das vítimas. É a justiça reconhecendo os crimes e apontando o dedo para o facínora — o valor moral e histórico disso, a meu ver, é incalculável.

O fato de o velho não ter condições de se defender o abona? Nem Zafke, nem Pinochet, pensaram nisso quando condenaram e executaram, em seus tempos áureos de juventude e vigor físico e intelectual, outros idosos (e crianças), que nem sequer foram julgados, já que não havia crime.

A imagem de velhinhos coitadinhos é a que gruda, e enseja a compaixão. O passado fica para trás, o mundo segue em frente, e a realidade muda — inclusive a maneira como a Justiça aplica (ou não) as punições. Só o que não se altera é a dor dos parentes das vítimas desses sanguinários assassinos. A eles, deixo minha solidariedade e meu protesto nesta crônica revoltada e inconformada.

Para finalizar, no caso brasileiro (para não perder o costume), pode ser que essa mesma estratégia seja aplicada a José Sarney, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro pelo MPF, no âmbito da Lava-Jato. Já está bem velho (87 anos), e pode muito bem ser declarado demente ou coisa que o valha, portanto, sem condições de se defender, às vésperas de um possível futuro julgamento. Não é de duvidar.