Um retrato da Rússia antes do comunismo

Um retrato da Rússia antes do comunismo

Finalmente, depois de vários meses, concluí a leitura da obra Contos Completos, de Liev (ou Leon ou Leo ou Lev) Tolstói, editado pela Cosac Naify, em 2015, tradução de Rubens Figueiredo. Pudera! Três gigantescos volumes, um total de 260 contos!

A tradução, feita diretamente do russo, ocupou três anos de trabalho do profissional. Um trabalho primoroso, mas ainda passaram alguns pequenos erros, que uma revisão mais cuidadosa poderia corrigir, como repetição de pronomes e equívocos de concordância verbal. Incômodos que não chegam a comprometer a qualidade do trabalho.

Não há como compreender o conteúdo dos contos sem uma pesquisa, ainda que breve, da biografia do autor. Tolstói foi um escritor que retratou a realidade de seu tempo e espaço. Profundamente religioso, chegou a ser excomungado pela Igreja Ortodoxa russa por pregar preceitos mais próximos aos propostos por Jesus, nada oficial, e ainda fazer críticas abertas à Igreja. Era um cristão raiz, não um cristão Nutella, como diriam nos dias de hoje. Era muito rico e quis se desfazer de todos os bens, mas sua esposa não concordava e, portanto, entraram em atrito. Chegou uma hora que o escritor não aguentou a pressão que se impôs e saiu de casa, para ter uma vida frugal. Morreu em poucos dias, numa estação de trem.

O primeiro dos três volumes contempla histórias escritas durante a juventude do autor. Jogatinas e, principalmente, as guerras no Cáucaso e na Criméia, incluindo o cerco de Sebastopol, são os principais temas abordados. A riqueza de detalhes, e a sensibilidade na descrição das situações e paisagens atinge o leitor em cheio: é como se o autor nos pegasse pela mão e nos conduzisse pela neve nos acampamentos de guerra, no hospital, nos campos de batalha, nas hospedarias, nas tabernas. Emociona. Tolstói serviu na Crimeia, era oficial; conheceu bem a realidade da guerra. Nestas histórias, já nos deparamos com a genialidade do autor de Guerra e Paz. Destaque para os contos “Sebastopol no mês de dezembro”, em que somos levados a visitar a cidade em pleno inverno, em plena guerra; “Sebastopol em maio”, que conta os bastidores da guerra; e “Manhã de um senhor de terras”, que critica a sociedade russa da época.

O segundo volume reúne histórias e outros textos que Tolstói preparou para a escola que abriu em suas terras para as crianças camponesas — compõem os quatro Livros Russos de Leitura e a Nova Cartilha. Há textos de raciocínio lógico, fábulas e relatos de crianças, simples. Confesso que fiquei meio aborrecida lendo essa parte e resolvi procurar saber do que se tratava. Tolstói era riquíssimo e não se conformava com a situação de penúria dos camponeses, os mujiques. Foi pioneiro em oferecer ensino e alfabetização às crianças camponesas, o que causou estranheza na sociedade da época. A maioria dos contos nem dá para classificar como conto, são historietas, relatos, várias sem qualquer conflito. Ainda assim, vale destacar o conto “O trabalhador Emelian e o tambor vazio”, no qual Tolstói aponta o abuso e a exploração que os pobres sofriam dos ricos.

No terceiro livro, vemos um Tolstói mais maduro, e também mais radical quanto aos preceitos cristãos. A maioria dos contos — senão todos — traz uma lição de moral, com forte apelo religioso (não o oficial da Igreja Ortodoxa, a qual, inclusive, recebe críticas). Nessas histórias, o autor mostra a degradação da sociedade russa, a exploração dos mais pobres pelos mais ricos, além de severas críticas ao governo. Há contos realmente geniais, como “A destruição do inferno e sua reconstrução”, que descreve diálogos entre vários demônios e Belzebu, explicando de onde advêm as desgraças do mundo; “Kholstomier”, cujo protagonista é um cavalo; e “O Diabo”, que apresenta dois finais.

Enfim, ao longo das mais de 2000 páginas, Tolstói traça um retrato bem realista, sem eufemismos, da Rússia pré-comunista, dominada por tsares e por uma aristocracia desalmada e exploradora; uma sociedade com características feudais. Era uma Rússia que vivia em guerra, recrutando jovens camponeses sem treinamento adequado e deixando inúmeras famílias desvalidas.

Mais do que simples contos, ao ler esta trilogia, aprendemos sobre toda uma época e uma cultura muito rica, levados pelo olhar crítico e acurado de um dos principais gênios da literatura mundial.

Por essas e muitas outras, vale a pena ler:

“Vaidade! É de supor que seja um traço característico e uma enfermidade peculiar do nosso século”.

“O herói de fato de minha novela, a quem amo com todas as forças da alma, o qual me empenhei em reconstituir em toda a sua beleza, e que sempre foi, é e será belo – é a verdade”.

“Na vida não há nada para se arrepender, a não ser os pecados”.

“Existe a velhice majestosa, a velhice repugnante, a deplorável. Existe também uma velhice ao mesmo tempo majestosa e repugnante”.

“É bom e alegre viver neste mundo, quando se tem alguém para amar e uma consciência pura”.

“Pago as dívidas: dou comida para meu pai e minha mãe. Empresto: dou comida para meus filhos. Jogo na água: crio minhas filhas”.

Editora Cosac Naify

Páginas 2.080

ISBN 978-8540509214

E-book: retirado de venda na Amazon

POD/ Box set a partir de R$ 300,00

Na Amazon: https://www.amazon.com.br/dp/8540509210