O amplo direito à liberdade: quando a impunidade assusta

A impunidade no Brasil é algo assustador. Não apenas para os crimes de colarinho branco, mas também para delitos violentos e crimes hediondos. O criminoso deve ter não apenas amplo direito à defesa, o que é um direito universal, mas, como vem sendo aplicado o código penal brasileiro, também amplo direito à liberdade.

A legislação penal no Brasil, pelo pouco que sei e posso acompanhar, dá inúmeras chances de o meliante ser solto, principalmente se tiver dinheiro para bancar bons advogados e recursos a decisões judiciais. Nem precisa cumprir a pena a que foi condenado: basta comportar-se direitinho na prisão que estará livre, leve, solto e lépido após um sexto do tempo total que deveria ficar atrás das grades.

As decisões de libertação de presos se baseiam nos ditames de uma legislação muito permissiva, e em antecedentes relativos à aplicação de certos pressupostos legais, como a impossibilidade de imputar culpa antes de transitado em julgado. Assim, em plena sexta-feira de carnaval, logo nas primeiras horas, fomos surpreendidos com a notícia de uma liminar concedida pelo Ministro Marco Aurélio Mello, garantindo liberdade ao conhecido goleiro Bruno, frio assassino confesso da mãe de seu filho Bruninho (coitado do garotinho!). Bruno pai, que confessou o crime, foi julgado por um júri popular, que o condenou a mais de 22 anos de prisão pela morte cruel de Eliza Samúdio. Ao ser posto em liberdade, o goleiro-assassino declarou que “a prisão perpétua não traria a vítima de volta”. Como será que isso soou aos ouvidos da mãe e dos demais familiares de Eliza? Porque aos ouvidos de uma pessoa qualquer, como esta que vos escreve, soa quase como uma confissão justificada, é como se dissesse: matei mesmo e não tem volta; que diferença isso faz?

É muita insensatez misturada a uma banalização do mal, confirmada pela liminar que o pôs em liberdade. Segundo levantamento do Promotor de Justiça do MP-SP, Aluísio Antonio Maciel Neto, o meritíssimo Ministro Marco Aurélio é campeão de soltura de criminosos que mereciam apodrecer na cadeia, sempre citando em seus pareceres um tal de “elemento neutro”. No caso de Bruno, seu parecer afirma que “o clamor social surge como elemento neutro, insuficiente a respaldar a preventiva”. Uma demonstração de que o pensamento do povo sobre o caso não tem importância. Mas o que importa, então? A gravidade do crime? A condenação em primeira instância? A confissão do assassinato? Nada disso parece importar, a não ser o “direito” à liberdade, já que, segundo a legislação, o assassino, mesmo tendo confessado o crime, não tem culpa formada até o transitado em julgado. Absurdo isso, não?

Em artigo publicado n’O Estado de São Paulo, o promotor Aluísio lista algumas decisões liminares de soltura de criminosos que Marco Aurélio Mello concedeu. Uma é especialmente bizarra: o prefeito eleito de Embu das Artes foi beneficiado, mesmo estando foragido, ou seja, sem dar mostras de colaboração com a Justiça.

Bruno não é o primeiro assassino que Marco Aurélio põe em liberdade: o autor dos disparos contra a Irmã Dorothy Stang faz parte da lista de solturas. Em plenário, foi o único voto favorável à liberdade de Suzane von Richthofen, aquela garota que matou cruelmente os pais e que hoje tem direito a saidão para celebrar o Dia da Mães e o Dos Pais. Também é de autoria de Marco Aurélio Mello o habeas corpus concedido ao banqueiro Salvatore Cacciola, no ano 2000. Neste caso, o parecer do egrégio juiz alegava que o simples risco de fuga não era um “dado concreto” para mantê-lo preso. Ante uma oportunidade de ouro como essa, Cacciola tratou de concretizar o dado e se mandou para a Itália.

O artigo do promotor Aluísio traz outros dados interessantes e concretos: Mello tinha, até novembro de 2016, 1.426 processos de habeas corpus sob sua responsabilidade, do total de 3.298. Como no STF o relator é escolhido por sorteio, a máquina que sorteia parece já estar viciada. Além disso, observa-se morosidade na decisão colegiada final sobre os pedidos de liberdade deferidos pelo Ministro Marco Aurélio.

Qualquer juiz deve julgar qualquer caso com imparcialidade e observância da Lei. Essas excrescências que podemos perceber só ocorrem porque existe uma legislação que privilegia o direito de um criminoso em detrimento do delito cometido. Há situações em que o direito do criminoso é tão valorizado que ele passa a ser vítima, geralmente do “sistema”, ou da “sociedade”, ou do “capital”, ou, em situações mais esdrúxulas, da verdadeira vítima.

A impunidade que observamos em nosso país é fruto de uma legislação permissiva e que banaliza o crime, o ato infrator cometido. O tempo máximo de prisão de 30 anos é pouco, e se torna menos ainda se considerarmos o benefício da soltura após cumprido um sexto da pena.

Nem a pena de morte para o assassino traria a mãe do Bruninho de volta, mas o cumprimento integral de qualquer pena traz a toda sociedade um sentimento de justiça. A esta altura, o goleiro-assassino, desfrutando seu direito à liberdade, curte o carnaval. Eliza sequer teve direito a um funeral digno.