Redenção cristã

redenção_crista

 

Não tinha ideia de qual ou de como seria seu destino dali em diante. Passara os últimos 10 anos vivendo na clausura do convento, cumprindo a promessa e realizando o sonho distorcido de sua mãe: queria vê-la santa, num altar. Mas definitivamente, Augustine nunca gostou dessa vida enclausurada.

No primeiro ano de convento, tentou fazer da vida no claustro um inferno. A única coisa que ganhou com isso foi intermináveis penitências, incluindo alguns dias a pão e água. Mas isso lhe deu uma ideia: com a desculpa de jejuar, fez uma greve de fome em segredo, que só não a matou porque sua irmã Eugenie quando a visitou e viu seu estado de saúde, acusou as freiras de maus-tratos, levou o padre, o bispo, todo mundo. Augustine não teve forças para falar e defender as freiras e acusar a pessoa certa: a mãe. Em vez disso, fora levada a um hospital e depois, já novamente nutrida, fora deixada em outro claustro. Neste, as freiras a proibiram de jejuar e disseram que havia outros sacrifícios agradáveis a Deus.

Nada que tentasse dava resultado. Decidiu, então, contar seu suplício em confissão. Contou ao padre que não tinha vocação e vivia em pecado porque seguia as regras sem fé. O Padre Antoine fez-lhe um severo agravo e deu-lhe como penitência dez chibatadas diárias, por um mês, para compensar a falta de fé. Augustine recebia as chibatadas sempre após a missa matinal, antes do desjejum, dadas pela Madre Madeleine, que o fazia chorando, dizendo ser também sua penitência, já que cumpria a ela chicotear uma irmã amada.

Passou-se um mês e Augustine, além de viver o pecado da falta de fé, também vivia o da mentira com mais força que nunca: fingia ser boa irmã, mas se antes rezava para conseguir sair dali, depois do período de chibatadas, rezava para que o claustro pegasse fogo com ela dentro. Seria uma morte horrível, mas digna do inferno que ela vivia ali. Outras vezes, não rezava, murmurava qualquer coisa. Só não conseguia escapar do terço das seis horas, quando a responsabilizaram por cantar os mistérios.

Passou, então, a odiar Nossa Senhora. Fora ela a principal culpada por tudo aquilo. Se Jesus não existisse, não existiria igreja, convento, nada. Ela seria uma pagã ou talvez uma judia feliz, pelo menos não viveria naquela prisão.

Pediu para ser responsável pela limpeza das imagens e passou anos lavando a imagem da Virgem, de maneira a desbotar as cores. Até que sua paciência se esgotou e ela finalmente se “acidentou”. Quebrou a imagem em muitos pedaços, fez questão de pisotear-lhe a cara de santinha de pau oco. “Virgem? Duvido!” – pensava enquanto quebrava mais pedaços antes que as irmãs viessem acudir.

Mas a felicidade sempre vem depois do tormento. Antes que chegasse a nova imagem, sua irmã Eugenie fora visitá-la para contar que a mãe havia morrido. “Morta? E eu aqui pagando pelos pecados dela, enquanto ela dorme na santa paz!” – disse, indignada à irmã. “Não sabia que era infeliz, Augustine. E creio que mamãe também não.”

Augustine recebeu permissão para ir aos funerais da mãe. Conheceu Serge, o marido de Eugenie e as cunhadas, esposas de seus irmãos. Conversou com todos eles e contou sua vida miserável e o quanto odiava a mãe. Desejava que ela estivesse queimando nas profundezas infernais! Um dia se encontrariam: afinal, vivia em pecado e seu destino só poderia ser o inferno.

Amou Serge, seu cunhado, desde o primeiro momento em que o viu. Um gentleman, um lorde, um verdadeiro cavalheiro. Serge se aproximou de Augustine, somente para lhe perguntar se ela gostaria de sair do convento. Após a resposta afirmativa de Augustine, Serge contou-lhe que seus irmãos já haviam decidido levá-la de volta ao claustro tão logo a mãe fosse enterrada. Não queriam mais uma pessoa para dividir a herança e não saberiam o que fazer com ela, com quem ela viveria. “Eugenie conversou comigo. Estamos realmente comovidos com sua sina, Augustine. Mas não podemos retirá-la do claustro. O único que pode fazê-lo é seu irmão mais velho e ele não o fará.” Augustine agradeceu e acrescentou “Vou fugir”. Serge pediu-lhe para não mencionar aquela palavra, nem comportar-se como se fosse fugir. Naquela noite, ele deixaria embaixo da porta de seu quarto um bilhete de trem, passagem de ida para a Áustria. Era um bom país, havia trabalho e teria a chance reconstruir sua vida.

E ali estava Augustine, sentada na classe “C” do trem, em meio a galinhas e porcos, mas feliz como nunca. Levava uma valise simples, com algumas roupas que Eugenie lhe dera. O funeral da mãe começaria quando raiasse o dia. E ela já estaria bem longe.

O trem já andava e Augustine começou a sentir sono. O dia ainda demoraria para amanhecer e continuava nevando tristemente, naquele que era o dia mais feliz de sua vida, o dia da libertação. O sol logo apareceria, junto com a alegria da liberdade. O comprovante do bilhete de trem exibia a data de 15 de dezembro de 1851, esse era o dia inesquecível.

Pensava em seu destino, incerto é verdade, graças à sua irmã Eugenie e a Serge, a quem amara porque era um bom homem, mais irmão que seus próprios irmãos de sangue, uma coisa era certa: Augustine poderia, enfim, viver sua própria vida e, só por isso, já era alguém realmente feliz.